O futebol, como todos os demais esportes de caráter popular e massivo
depois do início do século XX, foi alvo, e palco, de manifestações
racistas. Nos primeiros tempos, na época da fundação dos grandes clubes e
associações (ainda no final do século XIX), eram as elites que
dominavam as instituições esportivas, que mantinham um férreo controle
sobre o mundo dos esportes, considerado um privilégio – o ócio – das
classes superiores. Na Inglaterra, ou no Brasil, as associações e ligas
de futebol impunham regras que excluíam pobres e estrangeiros – das
áreas coloniais na Inglaterra, é claro – e negros e pardos – no caso do
Brasil – da participação efetiva nos esportes. Regras que impunham o
“desinteresse” e o “amadorismo” aos esportistas, quer dizer, não
poderiam ter remuneração de qualquer dito, afastava todos aqueles que
não tinham rendas elevadas da prática regular de esportes.
No dizer de Peter Gay, um historiador que se debruçou sobre a chamada “Era Vitoriana”, as elites das “public school”
(escolas das classes superiores inglesas) não queriam seus filhos
sofrendo caneladas de operários, caixeiros, ou taverneiros. Assim,
durante sua época “heroica”, o futebol foi placo de um amplo espaço de
exclusão e discriminação social. Ao mesmo tempo, outras modalidades
esportivas, como tênis, hipismo, iatismo, críquete e polo eram
considerados esportes mais nobres, menos “suados” e que evitavam as
“paixões” das multidões.
No entanto, a força do próprio futebol,
sua capacidade de empolgação e seu caráter democrático – afinal todos
podem jogar futebol, posto que o “equipamento” (ao contrário do polo, do
críquete, do iatismo, por exemplo) é mínimo e barato, e tudo pode ser
uma bola e uma baliza – acabou por se impor como um esporte de
multidões.
As ligas e associações britânicas procuraram, ainda,
ter o cuidado de separar os filhos de sua aristocracia da massa de
trabalhadores, providenciando campos e equipes que não deveriam ser
frequentadas indiscriminada ou mutuamente, originando equipes elitistas e
outras, excluídas, de caráter “popular”. Os trajes e o comportamento do
público eram vigiados e serviam como elemento de “separação”, além da
criação de camarotes e lugares “VIPs” para as elites no interior dos
estádios. Contudo, desde cedo, os clubes de futebol “operários”, como
foi o caso Arsenal, acabaram conquistando os corações e a fidelidade das
massas de esportistas ingleses, rompendo com a pretensa hegemonia
aristocrata nos esportes. Desde sua origem, obra de um grupo de
trabalhadores da “Woolwich Arsenal Armament Factory”, que
decidiram ter seu próprio time em 1886, o Arsenal pode facilmemnte
superar as agremiações da elite universitária das grandes “school” e, em
seguida, superar o criquete, o pólo e o hoipismo como um esporte de
massas.
Na Alemanha, onde o futebol tornou-se popular desde o
final da Grande Guerra, superando os esportes de tipo ginástica
coletiva, as associações tentaram afastar estrangeiros e trabalhadores
dos gramados oficiais (inclusive os católicos), o que ocasionou uma
longa disputa, em especial em torno de uma equipe de jogadores do
Schalke 04, que nos anos de 1920, colocou em campo um time de
trabalhadores ( eram mineiros ) e com alguns jogadores de origens
polonesa e católica, chocando a elite “ariana” das ligas esportivas
alemã. Contudo, a firmeza do Schalke 04, o “azulão”, tornou-o, então, o
papel de clube socialmente integrador.
Na Alemanha, até 1919,
antipatia com o futebol era bastante grande, em particular entre os
adeptos do “Turn”, a ginástica coletiva e praticada ao ar livre. Somente
o “Turn” era considerado um esporte tipicamente alemão, ligado bem mais
ao aperfeiçoamento físico e a disciplina do que a competição (esta
seria a noção de “esporte”, competição regrada, tipicamente britânica e
contrária a uma “Kultur” germânica). Somente depois da Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), a com a morte de milhares de atletas do “Turn” –
quase todos voluntários no conflito – que o futebol se generaliza na
Alemanha, passando dos campos de rua nas cidades da Renânia para as
fábricas. Assim, surgem clubes de feição “operária”, que terão forte
oposição e das elites locais, em especial no tocante ao tema do
amadorismo – ou seja, o monopólio daqueles que tinham rendas e podiam se
dedicar aos esportes “desinteressadamente”. O Schalke 04 (fundado em
1904, daí o “04”), com uma equipe de jogadores-operários (a maioria
mineradores), nos anos ´20 – contemporaneamente ao enfrentamento do
Vasco da Gama com a Associação carioca – será punido e desliga da Liga
de Futebol por incorporar operários ao time. Na Alemanha como no Brasil a
história do futebol é uma história da luta pela inclusão social e pela
construção da identidade nacional.
No Brasil, após a experiência
notável de Francisco Carregal, o primeiro jogador negro no Brasil, que
brilhou entre 1905 e 1910, pelo time do Bangu A. C. – afastado, contudo,
dos gramados por insistência da AMEA, a Associação Metropolitana de
Esportes Amadores ( uma associação monopolizada então pela elite
carioca, com os Guinle à frente ) , coube o Vasco da Gama, no memorável
torneio de 1923, trazer negros, pardos e populares para o interior de
time de primeira grandeza, mesmo tendo como consequências o rompimento
com as instituições dirigentes – divisão essa só sanada com o Jogo da
Amizade (América versus Vasco, nos anos de 1930), já sob insistência do
Governo de Getúlio Vargas. Destacou-se aí o jogador “Bolão” (que viria a
ser treinador do clube, o primeiro negro nesta posição).
Assim,
mesmo, em várias equipes, muitas vinculadas a clubes de perfil
elitista, o público e, principalmente, o jogador negro (também árbitros)
foram, ainda, durante bastante tempo alvo de discriminação, como nas
famosas histórias do encobrimento das características étnicas de negros
com o uso da “boina” e do “pó de arroz” em pleno gramado, como
construiu-se a imagem do Fluminense carioca. Talvez tenha sido o grande
jogador “Tesourinha”, já em 1952, no Grêmio, o último grande nome do
futebol brasileiro a enfrentar de forma clara as agruras da
discriminação racial.
Porém, o preconceito ainda imperou, e
atrapalhou, o futebol por bom tempo. O caso clássico foi em 1925, quando
o presidente da CBD, Oscar Costa, impediu que jogadores negros ou
mestiços fossem escalados para a seleção brasileira que jogaria o
Campeonato Sul-Americano em Buenos Aires. Suas razões eram claras: “era
necessário preservar a boa imagem do país!”. Venceram os argentinos, em
cuja seleção jogava o genial De Los Santos, um herói negro, artilheiro
do campeonato!
A popularização do futebol, irresistível depois da
popularização do rádio, do jornal da tela (o inesquecível “Canal 100”)
e, enfim, com televisão, acabou por tornar o fenômeno esportivo massivo,
popular e dar ao mesmo a cara do povo brasileiro: mestiço, empolgado,
participativo. Neste sentido, as manifestações de racismo e de má
educação, e de ausência de espírito esportivo tornaram-se raras nos
nossos estádios até frequentemente. Alguns clubes escolheriam, mesmo,
símbolos da negritude, como o “Urubu” flamenguista, como símbolo
identitário. Da mesma forma, a Legislação brasileira, desde da Lei
Afonso Arinos, de 1951, até a Constituição “cidadã” de 1988, passaram a
punir com rigor manifestações racistas, reduzindo a casos esporádicos e,
de qualquer forma, chocantes os atos de ofensa racial.
A
globalização e a multiplicação de equipes em campos – com clubes jogando
em áreas socialmente homogêneas e muitas vezes de mentalidade
provinciana -, nos grandes campeonatos nacionais e internacionais,
colocando face à face equipes de culturas e tradições diferentes, num
momento que o fenômeno de massificação cultural assoma aos meios de
comunicação, acentuou, por paradoxo, manifestações de estranheza,
inconformismo e, no limite, de ódio étnico e recusa à diferença. A
globalização pasteurizadora e, mesmo, a crise econômica mundial depois
de 2008 – criando nichos de xenofobia e de desconfiança frente ao
diferente e ao estrangeiro até o limite de manifestações fascistas em
torcidas como do Lazio ou do Borrusia - pode, infelizmente, trazer de
volta aos nossos estádios – na Itália, Espanha, Inglaterra e também na
América do Sul, incluindo o Brasil – manifestações de racismo contra
jogadores e juízes, em especial negros e pardos.
Infelizmente,
quando os casos começaram a se multiplicar, as associações e federações
esportivas, foram lenientes e evasivas. Trataram de tapar o sol com a
peneira da miopia. Tal ausência de resposta pronta e direta, incentivou a
transformação de manifestações de frustração social e de decepção
perante as atuais condições de crise social e desemprego, em ódio
racial. Em especial na Europa, em países atingidos por um brutal
desemprego (na Espanha cerca de 45% entre os jovens), a força, o sucesso
e a boa remuneração de outros jovens, estes jogadores de sucesso e de
origens etnicamente diversas, constitui-se em alva de ódio. O combate a
este ódio, originado na frustração no atual ambiente de crise, deve ser,
claro, enfrentado pela educação e pelo esclarecimento. Mas, tais
medidas, de longo prazo, não podem justificar a ausência de uma ação
direta das associações, a busca de direitos junto à justiça por parte
dos ofendidos.
O racismo é a raiva de uns que causa dor em
outros. Assim, além da educação e do uso da lei, importa também, e
muito, a corajosa e inteligente reação dos próprios jogadores,
negando-se a aceitar a regra do silêncio e do desconhecimento “olímpico”
do ódio gratuito. O racismo se responde com educação e ao racista com a
força da lei.
(*) Professor da UFRJ
vía:
http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Sobre-bananas-e-odio/30881
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