martes, 6 de agosto de 2013

Sociedade-Cultura: O discurso da servidão voluntária.....O darwinismo social de nosso capitalismo não sentencia que aquilo que sobrevive e sobrepuja é a única força possível – e válida? Sendo assim, por que as vítimas deveriam se identificar com as vítimas? Daniel Balint, protagonista de Tolerância Zero (2001), reproduz o discurso da servidão voluntária, “contanto que eu possa escarrar o meu ódio contra o outro que é tão impotente quanto eu mesmo”. Por Flávio Ricardo Vassoler

O darwinismo social de nosso capitalismo não sentencia que aquilo que sobrevive e sobrepuja é a única força possível – e válida? Sendo assim, por que as vítimas deveriam se identificar com as vítimas? Daniel Balint, protagonista de Tolerância Zero (2001), reproduz o discurso da servidão voluntária, “contanto que eu possa escarrar o meu ódio contra o outro que é tão impotente quanto eu mesmo”. Por Flávio Ricardo Vassoler


 
Conheçam Daniel Balint, protagonista do filme Tolerância Zero (2001), direção de Henry Bean. Um judeu renegado. Um jovem. Quando ainda estava na escola, Daniel teve uma áspera discussão com seu professor de Teologia. Estava em jogo a natureza da fé e do poder. A identidade de Deus. O professor discutia a passagem bíblica em que Deus ordena a Abraão que lhe ofereça seu filho Isaac em holocausto. Os demais alunos acatam a explicação (chancelada) do professor. “Deus queria testar Abraão para saber se, de fato, seu coração O amava sobre todas as coisas”. Mas Daniel não aceita o sermão repleto de contradições.

− Ainda que Deus, no derradeiro momento, tenha impedido o pai de imolar o próprio filho; ainda que um cordeiro tenha sido posteriormente oferecido em holocausto, tudo isso demonstra que o Pai está mais preocupado com o temor que impinge em seus filhos do que com a fé e o amor.

Escandalizado, o professor começa a vociferar e ameaça expulsar Daniel da sala. Mas o intelecto indômito do jovem quer levar a iconoclastia às últimas consequências:

− É isso mesmo, Deus só quer que tenhamos medo! E que importa que Abraão, ao fim e ao cabo, não matou Isaac? Deus lançou tal desafio, e no momento em que Abraão levantou o punhal, seu coração se fez impuro. Como Isaac poderia esquecer tudo aquilo? Poderia o filho perdoar algum dia ao próprio pai? Poderia o pai perdoar a si mesmo?

Daniel parece ressoar o abandono que outro judeu, Jesus Cristo, exalou em seus últimos momentos de crucificação:

− Pai, por que me abandonaste?

Daniel abandonou a escola que não sabia lidar com suas questões e angústias. Em tenra idade descobriu que a fé e o fetichismo são tão contíguos quanto o corpo e a sombra. Os espectadores só não esperávamos tamanha conversão passados alguns anos. No início de sua vida adulta, Daniel Balint começa a militar em movimentos de extrema direita. A cabeça raspada, os coturnos, os suspensórios e a suástica sob a jaqueta surrada não deixam dúvidas sobre sua nova orientação neonazista. Daniel, leitor de Mein Kampf (Minha Luta), discípulo de Adolf Schicklgruber, também conhecido como Adolf Hitler.

O redivivo episódio bíblico envolvendo Abraão e Isaac parece iluminar uma face obscura de Deus que a trágica conversão de Daniel pretende reproduzir. Como entender que um judeu possa envergar a suástica? Como entender que a vítima queira ser arregimentada pelo carrasco? “Ora”, diria Daniel, “Deus não deu cabo de seus filhos amados? Se assim é, apenas a cerca de arame farpado de Auschwitz, Dachau e Treblinka separa o amor do ódio, a vingança do perdão”. Nossa sociedade não cultua os vencedores? O darwinismo social de nosso capitalismo não sentencia que aquilo que sobrevive e sobrepuja é a única força possível – e válida? Sendo assim, por que as vítimas deveriam se identificar com as vítimas? (Ora, ora: o cliente nem sempre tem razão.) Daniel Balint reproduz o discurso da servidão voluntária, “contanto que eu possa escarrar o meu ódio contra o outro que é tão impotente quanto eu mesmo”.

Daniel e seus comparsas brigam sem mais. Negros, latinos e judeus. Num restaurante kosher, cujos alimentos obedecem à lei judaica, os neonazis, como Eva, querem comer o fruto proibido. Só que, ali, o proprietário judeu, munido de um taco de baseball, inicia uma briga que vai parar diante de um juiz. Os neonazis são sentenciados pelo dedo em riste da democracia:

− Vocês podem escolher entre passar 30 dias na cadeia ou ouvir histórias de sobreviventes de Auschwitz. E então, o que vai ser?

Pela primeira vez em suas vidas, os neonazis precisam se deparar com os efeitos concretos da barbárie fascista. Quando gangues e facções se enfrentam nas ruas e avenidas das megalópoles, o outro não passa de uma abstração. O objeto distante do ódio. Um alvo cada vez mais próximo. Agora, a truculência deve lidar com o sofrimento encarnado, deve escutar histórias daqueles que não conseguem se libertar do algoz da memória.

A medida judicial me parece fundamental. Há um fosso enorme entre fazer odes fictícias à opressão e assistir à morte de um ser humano por chutes e pauladas. Na verdade, quando uma gangue lincha uma vítima estirada, toda a humanidade da vítima – e dos carrascos – já se evadiu. Assim, os neonazis ouvirão relatos de estupros e afogamentos e torturas e assassínios de pessoas que há muito se sentem culpadas por terem sobrevivido. Já não será possível tratar o judeu como o espólio estatístico da câmera de gás. Ele e ela estão ali, poderiam ser nossos vizinhos, nossos amigos.

A medida judicial que aproxima vítimas e carrascos deveria se estender aos grandes mandatários que, de seus gabinetes, não ouvem os gritos e súplicas dos condenados da terra. Se o presidente Harry Truman conhecesse os homens e mulheres de Hiroshima e Nagasaki, talvez o bombardeiro Enola Gay não houvesse legado ao Japão sombras fosforescentes como escombros de guerra. As crianças de Hanói não tomariam banho com napalm pela manhã se John Fitzgerald Kennedy e Richard Nixon exalassem o odor dos corpos vietnamitas em decomposição – corpos desfigurados pelo agente laranja despejado pelos mesmos helicópteros hipócritas que, décadas depois, lançariam caixas de alimentos para amortizar a culpa do Ocidente.

Quando Balint ouve a história de um velho judeu que viu o próprio filho – um bebê! – ser arrancado de seus braços para morrer espetado pela baioneta de um soldado da temível SS, o jovem que outrora questionara Deus por conta de Sua brutalidade para com Abraão e Isaac, quase às lágrimas, só faz gritar:

− Mas o que foi que você fez para conter o soldado, velho? Você ficou assistindo à morte de seu próprio filho? Por que não reagiu? Por que não o matou? Por que você não trucidou aquele assassino?

Daniel cospe as palavras com ódio, o velho pai chora copiosamente, até que uma sobrevivente logo ao lado questiona com todo o afinco o heroísmo de estufa do jovem Daniel.

− Mas, ora, como ousa?! Você não estava ali, como pode julgá-lo? Seu tolo, seu estúpido! Jovens mais fortes e mais valentes do que você quedaram inertes em situações similares. Você, aqui, em seu país rico, você acha que pode bancar o herói!? Só alguém dentro de uma situação pode julgá-la. E esse alguém será sempre o último a poder julgá-la. O último! O sobrevivente.

Por um momento, Daniel se cala. É preciso lutar contra a piedade, “eu não quero chorar, eu não posso chorar!” Súbito, Daniel levanta a cabeça e dispara:

− Mate o seu inimigo! Resista! Eis o que é preciso fazer.

Daniel Balint, neonazista judeu, acaba cometendo suicídio. O jovem explode uma sinagoga a que fora para rezar. “Mate o seu inimigo”. Mate a si mesmo. “Ora”, diria Daniel, “Deus não deu cabo de seus filhos amados? Se assim é, apenas a cerca de arame farpado de Auschwitz, Dachau e Treblinka separa o amor do ódio, a vingança do perdão”. Nossa sociedade não cultua os vencedores? O darwinismo social de nosso capitalismo não sentencia que aquilo que sobrevive e sobrepuja é a única força possível – e válida? Sendo assim, por que as vítimas deveriam se identificar com as vítimas? (Ora, ora: o cliente nem sempre tem razão.) Daniel Balint reproduz o discurso da servidão voluntária, “contanto que eu possa escarrar o meu ódio contra o outro que é tão impotente quanto eu mesmo”.

*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). A partir do dia 02 de setembro, passará a apresentar o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – segundas-feiras, às 19h, na TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.


Via:

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22465

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