A resposta está na conjuntura. Não está na vontade dos dirigentes
partidários, sindicais, dos movimentos sociais e nem mesmo do MPL – que
foram tão pegos de surpresa quanto qualquer outro cidadão. Não está em
manobras e articulações palacianas, nem da “direita” nem da “esquerda”.
“Seria mais fácil explicar os protestos
quando eles ocorrem em países não democráticos, como no Egito e na
Tunísia, em 2011, ou em países onde a crise econômica elevou a índices
assustadores o número de jovens desempregados, como na Espanha e na
Grécia, do que quando eles ocorrem em países com governos populares e
democráticos – como no Brasil, que
atualmente exibe os menores índices de desemprego de sua história e uma
expansão sem paralelo dos direitos econômicos e sociais. Muitos
analistas atribuem os recentes protestos à rejeição da política. Creio
ser precisamente o contrário: eles refletem o desejo de ampliar o
alcance da democracia, de encorajar as pessoas a participarem de uma
maneira mais plena.”
O diagnóstico é feito pelo ex-presidente
Luís Inácio Lula da Silva, em artigo de sua autoria, publicado no
jornal estadunidense The New York Times (clique aqui para ler), em 16 de julho. Lula está certo. Os jovens que tomaram as ruas querem mais do que aquilo que já têm.
O desejo se reflete na palavra de ordem
“queremos escolas (e hospitais, postos de saúde, serviços públicos) com
padrão Fifa”. A alusão à Fifa não é um aspecto secundário das
manifestações.
Ao contrário: mostra que, no Brasil
contemporâneo, o próprio circo pegou fogo. Estamos a um milhão de anos
luz do inglório 1970, quando a conquista do tricampeonato mundial deu
fôlego à ditadura em sua fase mais sangrenta, sob as botas do general
Emílio Garrastazu Médici.
Embalados pelos inestimáveis serviços prestados ao regime pela Rede Globo, os brasileiros cantavam o hino oficioso “90 milhões em ação / pra frente Brasil / do meu coração”, enquanto agentes da ditadura torturavam e assassinavam nos presídios oficiais e nas masmorras clandestinas.
Já não é assim. “Fifa”, hoje, virou
sinônimo de imperialismo, e “Copa do Mundo” de corrupção, mamata e
desperdício do dinheiro público.
Não por acaso, as sedes da Globo em São Paulo e no Rio foram objeto de repúdio dos manifestantes.
Mesmo Pelé teve que vir a público
explicar que sua majestade nada tinha contra as “jornadas de junho”,
após o seu apelo patético, gravado em vídeo, para que todos esquecessem
as manifestações e apoiassem a seleção, durante a Copa das
Confederações.
“Pelé calado é um poeta”, respondeu o
ex-jogador e atual deputado federal Romário, que denuncia a imensa farra
com o erário possibilitada pela Copa de 2014 e pelos Jogos Olímpicos de
2016.
Os tempos, pois, são outros. Um claro sinal disso é dado pela seguinte comparação: em 1995, a heroica greve dos trabalhadores brasileiros
do petróleo, iniciada em 3 de maio, morreu melancolicamente, 32 dias
depois, sem ter logrado atrair a solidariedade ativa do movimento
sindical e da sociedade, abrindo o caminho para Fernando Henrique
“Thatcher” Cardoso impor todas as reformas que pretendia ao mundo do
trabalho; quase exatos 18 anos depois, no início de junho, um pequeno
grupo intitulado Movimento pelo Passe Livre, convoca atos para protestar
contra o aumento de 20 centavos no preço do transporte urbano, em
algumas das principais cidades do país, para detonar um movimento que
acabaria levando pelo menos 2 milhões às ruas. É isso que deve ser
explicado: porque, em 1995, o movimento iniciado por uma das mais
poderosas e organizadas categorias do país foi incapaz de atrair as
simpatias da população, ao passo que, em 2013, o MPL incendiou o Brasil.
A resposta está na conjuntura. Não
está na vontade dos dirigentes partidários, sindicais, dos movimentos
sociais e nem mesmo do MPL – que foram tão pegos de surpresa quanto
qualquer outro cidadão. Não está em manobras e articulações palacianas,
nem da “direita” nem da “esquerda”.
Está no conjunto complexo,
contraditório, profundo e extremamente poderoso que constitui o tecido
das relações econômicas, sociais, políticas, ideológicas, sociais e
morais de uma determinada época.
Não é só no Brasil
que isso acontece, é óbvio. Dificilmente o vendedor ambulante tunisiano
Ahmed Buazizi teria consciência de que ao atear fogo ao próprio corpo,
em 17 de dezembro de 2010, estaria com isso incendiando o Oriente Médio.
Quantos Bouazizis fizeram gestos
extremados, antes dele, sem com isso causar o menor distúrbio social?
Porque justamente aquele gestou produziu a assim chamada “primavera
árabe”? A resposta está na conjuntura.
A revolucionária Rosa Luxemburgo notou
isso, ao comparar uma greve espontânea, organizada pelos trabalhadores
de Batumi, na Geórgia (situada no Cáucaso), em 1902, com movimentos
liderados, na mesma época, pelas poderosas centrais sindicais
social-democratas na Alemanha: a greve dos trabalhadores de Batumi
acabou desembocando, três anos depois, no Soviete de São Petersburgo, um
dos grandes impulsionadores da Revolução Bolchevique de 1917; os
movimentos na Alemanha mal foram notados.
Novamente: o que faz com que uma greve
espontânea, numa região tão secundaria, do ponto de vista econômico,
acabe sendo o motor de uma das mais importantes revoluções da história,
enquanto movimentos operários organizados num país central para a
economia capitalista não surta grandes efeitos? A própria Rosa explica: a
resposta está na conjuntura.
Lula está certo, ao dizer que a
juventude quer mais. O Programa Bolsa Família, o aumento real do salário
mínimo, os programas de inclusão social (como o Luz para Todos), na
esfera da educação (como o Prouni) e o da casa própria (Minha Casa Minha
Vida) colocaram milhões de brasileiros na esfera do consumo, a qual foi artificialmente ampliada ao máximo com a concessão de créditos fáceis aos consumidores.
Milhões e milhões de brasileiros,
antes relegados às margens do sistema econômico, agora aprenderam, com
os mais variados graus de consciência ou intuição, que não têm que se
conformar com a precariedade do sistema público de educação e saúde; que
a corrupção pode e deve ser punida; que o sistema de transporte público
é entregue a empresas privadas, embora fartamente subsidiado pelos
impostos que todos pagam; que não há dinheiro para a segurança, para as
escolas e para a saúde, mas há para imensos estádios de futebol.
O que Lula não diz em seu artigo é que boa parte dos problemas que hoje afligem a população brasileira
também é resultado das políticas adotadas pelo seu governo e mantidas
por aquela que preenche os contornos de seu espectro refratado no
Planalto, a senhora Dilma Rousseff.
Lula não diz, por exemplo, que o
programa Bolsa Família equivale a escassos 10% do total dos juros da
dívida pública anualmente pagos ao capital financeiro; que os
investimentos feitos pelo governo federal em educação e saúde são um dos
menores do mundo, quando comparados ao PIB; que o governo adotou uma
política irresponsável de promover o crescimento econômico com base no
endividamento das famílias, que hoje enfrentam o fantasma da
inadimplência; que, ideologicamente, o lulismo privilegiou uma concepção
neoliberal que confunde “progresso social” com “enriquecimento dos
indivíduos”, assim criando um abismo intransponível entre o eventual
maior bem-estar que cada família passou a experimentar da porta de sua
casa para dentro e o desastre absoluto verificado da porta para fora
(insegurança, medo, poluição, caos urbano, guerras entre gangues, etc.);
e que o”lulismo” transformou o PT e a CUT, símbolos das esperanças que
mobilizaram milhões de brasileiros no final dos anos 70, em condutos forçados de negociatas do mercado persa chamado Congresso Nacional.
O Brasil
chegou a um ponto de basta. Esse “ponto de basta” apenas aparentemente
se apresenta como que do nada, uma espécie de raio em céu azul.
Ele vem se anunciando há tempos, embora
só retrospectivamente os sinais ganhem visibilidade adequada: no elevado
índice de abstenção e voto nulo nas eleições de 2010; em revoltas
explosivas, como a ocorrida no canteiro de obras na usina de Jirau
(Amazônia), em março de 1911; nas inúmeras greves do funcionalismo
público, nas revoltas em bairros da periferia, na longa paralisação que
envolveu quase 100% das universidades federais em 2012, seguida pela
greve dos professores do ensino municipal e estadual durante os
primeiros meses de 2013.
Ninguém aguenta mais o inferno em que se
transformou a vida nas grandes cidades, o espetáculo perdulário dos
gastos públicos com a Copa, o descaso das autoridades com as pessoas
que, diariamente, morrem ou padecem nas filas do SUS.
É esse sentimento de basta que explica
aquilo que, de outra maneira, permaneceria incompreensível: quanto mais a
polícia usa da violência, mais as pessoas vão às ruas. Seria de se
esperar o oposto.
De fato, a polícia também foi
surpreendida pela decisão da população. Ao contrário do que sempre
aconteceu, a violência, por si só, mostrou-se incapaz de conter ou
impedir os protestos. Trata-se de uma situação conjuntural em que os “de
cima” – a burguesia e os seus representantes – já não conseguem
governar como sempre governaram, ao passo que os “de baixo” – os
trabalhadores, a juventude, a maioria da nação – já não suportam mais
viver como sempre viveram.
Vladimir Ilitch Lênin assim descreve uma
conjuntura que pode desembocar numa crise revolucionária.Não se trata,
aqui, de fazer futurologia. Potencialmente, o Brasil vive hoje uma situação conjuntural que pode desembocar numa crise revolucionária.
[Gostou do texto? Ajude o Viomundo a manter produção própria, assinando aqui]
Isso aconteceu, por exemplo, na
Argentina, no começo do século, quando os trabalhadores e a população
expulsaram o presidente Fernando de La Rúa e sucedâneos a pontapés da
Casa Rosada, aos gritos de “que se vayan todos”; e tudo para acabarem,
melancolicamente, elegendo o peronista Néstor Kirchner, que ainda teve
tempo de conduzir a sua mulher, a inefável Cristina, à chefia da Casa
Rosada, antes de morrer.
O que acontecerá no Brasil? É claro que ninguém sabe. Mas é uma questão que preocupa, pelas dimensões que o país ocupa no cenário mundial.
O Brasil
ostenta o 7º maior PIB do planeta (2,5 trilhões de dólares), é um dos
pilares dos BRICs e peça importante de um edifício econômico cujas bases
estão solapadas pela crise que se arrasta desde 2007.
Do ponto de vista do capital financeiro
mundial, a conjuntura ideal seria aquela que lhe permitisse manter taxas
de lucro astronômicas no Brasil (como as exibidas pelos bancos), numa situação de “ordem” e estabilidade social.
Se uma pequena ilhota como o Chipre (PIB
de 25 bilhões) foi capaz de colocar o mundo em polvorosa – tamanha a
fragilidade da Zona do Euro -, imagine o que acontecerá se o “gigante”
começar a dar passos de anão.
Mas rimar paraíso financeiro com ordem social não será mais possível no Brasil.
O capital não pode abrir mão da taxa de lucros, ainda que isso
signifique pressionar o governo para arrancar da população as poucas
conquistas sociais já alcançadas (por exemplo, com investimentos ainda
menores nos setores de educação e saúde, para assegurar a remuneração do
capital, por meio do superávit primário).
Dilma está entre a cruz e a espada. Para
atender ao capital, terá que enfrentar a população nas ruas; para
atender às demandas da população, terá que romper, ou pelo menos
resistir ao capital.
Os prazos são cada vez mais curtos, como
mostra a valorização crescente do dólar (mais de 10% em dois meses), e
com ela o preço do petróleo importado, dos insumos agrícolas e das
máquinas que empregam tecnologia de ponta, com todas as consequências
para a vida.
Até quando o governo federal conseguirá manobrar para impedir que a população sinta em cheio os efeitos da crise econômica?
Dilma procura “enquadrar” o movimento
das ruas, canalizando as energias para as vias institucionais,
configuradas pelas propostas de Constituinte (que teve curtíssima vida) e
de plebiscito sobre a reforma política (incapaz, até o momento, de
agregar um núcleo capaz de lhe dar forma concreta e eficaz).
Claro que a “oposição de direita” (aqui
entendida como os patéticos senhores agregados no PSDB e redondezas)
tenta bombardear qualquer proposta oriunda do Planalto.
A “esquerda”, ou o que sobrou dela, agrupada principalmente no PSOL, mostra-se impotente para apontar alternativas.
Todos os partidos estão de olho nas
eleições presidenciais de 2014, e jogarão as suas fichas para colher os
máximos de dividendos da crise.
A “direita”, que nada tem a propor,
tenta alimentar a erosão da base governista, ao passo que faz o elogio
da “ordem” nas manifestações (novamente, a Rede Globo, secundada por
emissoras de menor importância, é providencial na tarefa de criar um
consenso nacional segundo a qual só é legítima a manifestação que
respeita estritamente os limites da propriedade privada e o respeito
supersticioso à “autoridade constituída”).
A mediocridade da oposição “de direita” e
a impotência da “esquerda” ainda dão fôlego ao governo Dilma, que,
claramente, oscila ao sabor dos acontecimentos.Lula acompanha à
distância a evolução da conjuntura. Assiste de camarote à “fritura” de
Dilma.
Não por acaso, escolheu o NYT, porta-voz
do establishment financeiro liberal dos Estados Unidos, para dar o seu
recado: ele ainda faz parte do jogo, ainda é capaz de mover as peças,
ainda pode ser o Bonaparte que surge a cavalo, no alto do Planalto, para
tentar recompor a confiança da juventude e dos trabalhadores na forma
partidária da representação política.
Em seu artigo, ele acena com a necessidade de uma “transformação profunda do PT”.
O que isso significa, talvez nem o próprio Lula saiba. Ainda.
Arte: “É a conjuntura, estúpido”
...
Vía:
http://www.kaosenlared.net/america-latina/item/63365-brasil-%C3%A9-a-conjuntura-est%C3%BApido.html
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