Medida provisória é marcada pela mercantilização da terra e desoneração do INCRA das obrigações junto às famílias assentadas.
Por Sérgio Sauer
Da Carta Maior
Em entrevista, sob o título “Medida Provisória marcará uma nova fase da
reforma agrária no país”, veiculada no dia 18/10/2016, o presidente do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), senhor
Leonardo Góes, confirmou informações de que o governo deverá publicar,
em breve, mudanças no programa de reforma agrária por meio da edição de
uma Medida Provisória (MP). Essa MP, segundo a entrevista, deverá
estabelecer regras e critérios para regulamentar a titulação de lotes em
projetos de assentamentos e a selecionar famílias para novos
assentamentos.
Apesar do presidente do INCRA ter destacado “que toda e qualquer
mudança virá com o objetivo de aprimorar os instrumentos utilizados pelo
Incra na execução do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA)”, a já
batida retórica de agilizar e melhorar as políticas e “dar maior
segurança jurídica àqueles que têm terra e produzem” alimentos, o
objetivo central é “marcar uma nova fase da reforma agrária no país”.
Diante do acesso à uma versão (preliminar?) do texto da Medida
Provisória (não há nenhuma segurança que o mesmo será apresentado ao
Congresso como está), faço aqui algumas análises sobre esta “nova fase”,
nitidamente marcada pela mercantilização da reforma agrária.
1. Conteúdo geral do texto (preliminar) da MP
Conforme versão, a MP deverá promover mudanças significativas em três
leis, ou seja, na Lei nº 8.929, de 25 de fevereiro de 1993 (a assim
chamada “Lei da reforma agrária”), Lei nº 13.001, de 20 de junho de 2014
(sobre créditos de famílias assentadas) e Lei nº 11.952, de 25 de junho
de 2009, sobre o Terra Legal (regularização de posses na Amazônia
Legal).
A proposta em apreço faz mudanças em mais de uma dezena de artigos da
Lei de 1993, particularmente nos Art. 5º (possibilidade de pagamento de
indenização de desapropriações em dinheiro) e Art. 19 (processo de
seleção de famílias beneficiárias da reforma agrária). Propõe também uma
série de mudanças na Lei do Terra Legal, começando por estender a sua
validade até 2022 e para além da Amazônia Legal (inclusive de projetos
de colonização). Faz ainda propostas de alteração nos valores a serem
cobrados das terras regularizadas (Art. 12 da referida lei) até o limite
de 15 módulos fiscais, conforme veremos detalhes abaixo.
2. Comentários sobre mudanças propostas na Lei nº 8.929
A primeira grande mudança na Lei da Reforma Agrária está relacionado à
titulação dos lotes nos projetos de reforma agrária, conforme já
amplamente anunciado. O texto atual da lei (§ 4o do Art. 18) estabelece
que “é facultado ao beneficiário do programa de reforma agrária,
individual ou coletivamente, optar pela CDRU [Concessão de Direito Real
de Uso], que lhe será outorgada na forma do regulamento”. Este §
passaria a ter a seguinte redação, “regulamento disporá sobre as
condições e a forma de outorga do título de domínio e da CDRU aos
beneficiários dos projetos...”. A mudança é bastante simples, ou seja,
não há mais a opção da família beneficiária, abrindo a possibilidade
para que o INCRA emita todos os títulos por “decreto”.
Ainda de acordo com o texto da MP, uma mudança de redação no §1º, do
mesmo Art. 18, deixa claro o prazo que o beneficiário terá para negociar
o título. De acordo com o texto, esses títulos de domínio passarão a
ser negociáveis após 10 anos, “contando da celebração do contrato de
concessão de uso ou de outro instrumento...”, sendo que todos os
projetos de assentamentos e a distribuição de lotes devem ter sido
feitos por meio de tais títulos (caput do Art. 18 da lei em vigor). Em
outras palavras, assim que for emitido o título, todos lotes em
assentamentos com mais de 10 anos são negociáveis, portanto, estão no
mercado de terras.
Outra mudança importante está relacionada à seleção das famílias
beneficiárias dos programas de reforma agrária. Em primeiro lugar, essa
seleção deverá ser feita via edital (chamadas públicas), com ampla
divulgação (§1º do Art. 19). Esse será um edital de convocação no
município (parte do processo de municipalização da reforma agrária) onde
o projeto de assentamento será localizado.
Vale destacar a “tendência de municipalização” das ações de reforma
agrária no conjunto da proposta. Essa unidade da Federação – inclusive
ignorando todos os debates das últimas décadas sobre os problemas desse
tipo de delimitação geográfica e ausência total da discussão territorial
– passa a ser o limite para as possíveis famílias beneficiárias (§1º do
Art. 19), sendo prioridade para assentar as famílias da “lista de
espera” (de acordo com Inciso II, do Art. 19-A, a segunda prioridade são
as famílias a mais tempo residentes no município) e as famílias
acampadas no município (Inciso IV do mesmo artigo).
Ainda sobre a seleção, o texto da MP propõe seis (6) critérios para
classificar as famílias beneficiárias, dando preferência “ao
desapropriado” (Inciso I, do Art. 19). Em outros termos, o primeiro
beneficiário da desapropriação é o (pretenso) proprietário que, além de
receber indenização (valor de mercado pela terra que não cumpre a função
social), poderá ficar assentado no projeto. Claramente é uma tentativa
de “economizar recursos” (?) nas aquisições de terras, pois afirma que o
desapropriado terá “preferência para a parcela na qual se situe a sede
do imóvel”, sendo que, nesse caso, “será excluída da indenização”.
Além dos benefícios já mencionados acima, esse tipo de regra deverá
resultar em: a) sua total inviabilidade, portanto, uma regra
absolutamente insólita; ou, b) na geração ou acirramento dos conflitos e
disputas por terra. Nitidamente é um critério ou regra que expressa o
total desconhecimento – tanto no sentido de falta de conhecimento como
de desconsideração ou retirada da importância política – das disputas
históricas por terra no campo brasileiro.
Os demais critérios estabelecidos para a seleção de famílias, apesar de
legítimos – incluem trabalhadores vítimas de trabalho escravo, retirados
de outras terras, em situação de vulnerabilidade social, entre outros –
desconsideram completamente a histórica demanda social por terra e
reforma agrária. Esta demanda social é, pelo menos nas últimas 4 ou 5
décadas, expressa por meio de ocupações e acampamentos. Para além de
expressão política, as pessoas e famílias organizadas em acampamentos e
ocupações corporificam uma demanda histórica (é uma demanda social
ativa!), completamente ignorada nos critérios propostos.
Além do desconhecimento da demanda social, o texto da MP (Art. 19)
estabelece mecanismos absolutamente burocráticos como, por exemplo, a
criação de “lista de candidatos” (§3º) nos casos em houver demanda maior
que a capacidade de alocação das famílias no projeto. Esgotada a lista
de candidatos, abre-se nova chamada via edital (§4º). Baseado nos
processos históricos, e mesmo em tentativas do passado recente como
inscrição via correios, são mecanismos burocráticos fadados ao fracasso
na seleção de famílias para fins de reforma agrária.
Há ainda outros elementos extremamente problemático, os quais deverão
contribuir pouco para a tal “nova fase da reforma agrária”. Primeiro, é o
caso da presença irregular de ocupantes de lotes (Art. 18-B e 26-B). Ao
longo do texto fica clara a intenção de regularizar todos os casos,
desde que se enquadre nos critérios estabelecidos no Art. 20, ou seja,
não ser proprietário de outra terra (Inciso II do Art. 20).
O segundo elemento refere-se ao resgate de Títulos da Dívida Agrária
(TDA) imitidos nos programas de reforma agrária. Não está sendo proposta
mudanças nos atuais prazos de resgate (resgates a partir do segundo
ano, escalonados de acordo com o tamanho do imóvel desapropriado,
conforme Art. 5º da lei vigente), mas incluindo nesses a possibilidade
de resgatar também todos os imóveis desapropriados por “acordo
administrativo” e/ou realizado pela Lei Complementar 76 (§ 4º). A lei
atual (mesmo § 4º) restringe ao “caso de aquisição por compra e venda de
imóveis rurais”, ou seja, na aplicação do Decreto 433, de 24 de Janeiro
de 1992, sendo que a redação da MP abre para todos os casos.
3. Comentários sobre mudanças propostas na Lei nº 11.952
O texto da MP propõe uma série de mudanças no conteúdo e extensão da
Lei, portanto, no programa Terra Lei. Um dos itens principais, conforme
já mencionado, é o seu alongamento até 2022 (Art. 33), sendo que a lei
em vigor (mesmo artigo) “estabeleceu o prazo de cinco anos”. O Decreto
8.273, de 26 de junho de 2014, em seu Art. 1º, havia prorrogado este
prazo por mais três anos (até 2016).
Além de mudança na redação para alongar esse prazo, o texto da MP
transfere as competências do INCRA de regularização fundiária para o
agora extinto Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA). Redação que
deverá ser alterada, ou resultar em outras mudanças institucionais (?).
Um segundo aspecto fundamental do texto em apreço é a aplicação da Lei
11.952 em todo o território nacional. De acordo com nova redação (Art.
40-A), poderão ser aplicadas “as disposições desta Lei à regularização
fundiária das ocupações fora da Amazônia Legal em áreas rurais da União e
do Incra”. Consequentemente, as regras do Terra Legal, diferente dos
dispositivos estabelecidos para regularização fundiária do Incra, passam
a valer para todo o País.
Terceiro, apesar de manter o limite de 15 módulos fiscais que não
excedem a 1500 hectares, a MP complementa a Lei em vigor e propõe um
escalonamento para o pagamento do imóvel regularizado (§ 1º, Art. 12).
Extrapolando o estabelecido no § 3º da Lei (“poderão ser aplicados
índices diferenciados para a alienação ou concessão de direito real de
uso das áreas onde as ocupações não excedam a 4 módulos fiscais”), a MP
estabelece percentuais de 10% (imóveis acima de 01 a 02 módulos) até 80%
(imóveis de 12 a 15 módulos) da Planilha de Preços Referenciais (PPR)
para a terra nua. A MP cria cinco faixas para os imóveis acima de quatro
(04) módulos, partindo de 40% da PPR (imóveis entre 4 e 6 módulos) até
os 80% do valor da terra nua (imóveis entre 12 e 15 módulos).
Em relação às áreas regularizadas, dois aspectos relacionados às
cláusulas resolutivas (área titulada deveria cumprir certas condições)
chamam a atenção. Em primeiro lugar, há uma substituição de termos da
Constituição sobre a função social por “termos insólitos”. Além de negar
conquistas históricas, a exigência de “aproveitamento racional e
adequado da área” é substituído por “manutenção da destinação agrária,
por meio de prática de cultura efetiva”. Claramente há, mais uma vez,
uma tradução (e restrição) do “racional e adequado” como apenas
exploração produtiva (mesmo sendo impreciso o uso da expressão “cultura
efetiva”).
Além de manter que uma das cláusulas são “as condições e forma de
pagamento” (Inciso V do Art. 15), prevê a extinção dessas “condições
resolutivas caso o beneficiário opte em realizar o pagamento integral do
preço do imóvel” (§ 2º). No entanto, é ainda mais estranho que, em
dispositivo separado (§ 3º) estabelece que este só vale as áreas
regularizadas de até um (01) módulo fiscal.
Além de estabelecer percentuais para pagamento da terra regularizada e
abrir para pagamentos à vista (Art. 17, § 2º, etc.), a MP cria
possibilidades para alienar (vender/comercializar) terras regularizadas
de até 15 módulos, sem respeitar os prazos já estabelecidos. Nos termos
da Lei em vigor (§ 3º, do Art. 15), “os títulos referentes às áreas de
até 4 (quatro) módulos fiscais serão intransferíveis e inegociáveis” por
um prazo de 10 anos, o que é suprimido do texto proposto.
Consequentemente, esta nova redação (na verdade simples supressão do §
3º na nova redação) abre a possibilidade de alienar áreas regularizadas
sem qualquer restrição temporal.
Apontamentos sobre perspectivas dessa “nova fase”
Conforme já mencionado, essa breve análise tomo como base um texto
“apócrifo”, ou seja, uma versão não oficial e preliminar (provavelmente
uma proposta em elaboração) da Medida Provisória anunciada como “marca
de uma nova fase da reforma agrária” no Brasil. Além de todos esses
pontos críticos já mencionados, é preciso destacar – certamente tentando
responder às acusações e apontamentos do Tribunal de Contas da União –
que há alguns passos que poderão ser benéficos às famílias assentadas.
Um exemplo de avanço seria que, atualmente, entre os critérios de
exclusão dos programas de reforma agrária está a pessoa que (Art. 20,
Inciso I) “for ocupante de cargo, emprego ou função pública remunerada”.
A MP cria uma exceção de não exclusão da pessoa que, sendo enquadrada
nesse critério, “o exercício do cargo, emprego ou função pública seja
compatível com a exploração da parcela pelo núcleo familiar beneficiado”
(§2º, do Art. 20). Segundo o texto da MP, não serão excluídos dos
projetos de assentamentos aquelas pessoas que exercem um cargo público
(professor, agente de saúde, vereador, deputado estatual, advogado,
etc.). Esta regra resolve muitos casos em que o acesso à terra criou
oportunidades para crescimento pessoal, profissional, exercício de
liderança, etc.
Concluindo, apesar das narrativas de agilizar e atualizar os processos,
essa nova fase parece ser caracterizada por: a) decisões impositivas do
INCRA ou de outras instâncias de governo (municípios ou entidades da
administração indireta) como, por exemplo, decisões sobre a emissão de
títulos sem consulta à família; b) mercantilização da terra (pagamento
de desapropriação em dinheiro; liberação para negociar títulos;
pagamento à vista da parcela regularizada, etc.) e, c) descentralização,
na verdade, municipalização e desoneração do INCRA das obrigações junto
às famílias assentadas e execução de programas de desenvolvimento no
campo.
* Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB).
Fonte: MST
vía:
http://www.biodiversidadla.org/Principal/Secciones/Documentos/Brasil_Analise_do_texto_da_MP_da_reforma_agraria
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