Juca Kfouri faz um balanço dos protestos ocorridos na Copa das
Confederações e diz que “suntuosidade” de estádios” “agrediu as
pessoas”. E fez sua previsão para a Copa 2014: “Se não houver respostas,
[a reação popular] vai ser maior do que foi”.
Na chegada, Juca Kfouri já foi
tranquilizando a equipe da Pública, dizendo que estava bem, e que o
problema de saúde que sofreu no dia da semifinal entre Brasil e Uruguai,
em Belo Horizonte, não era nada do que saiu na imprensa. “Fui vítima do
sensacionalismo de alguns coleguinhas”, comentou, explicando que ficou
pouquíssimo tempo sem trabalhar e que teve o apoio de ninguém menos que
Tostão, tricampeão do mundo em 1970, que também é
médico.Workaholic assumido assumido – ele é colunista da Folha de São
Paulo, da rádio CBN e do UOL e apresentador e comentarista na ESPN -,
Juca nos recebeu numa sexta-feira ensolarada em seu escritório, em
Higienópolis, depois de gravar uma entrevista com o filósofo Vladimir
Safatle justamente sobre a “Copa das Manifestações”, diz, em referência
aos protestos que ocorreram durante a Copa das Confederações.
O papo também foi além do futebol: em
mais de uma hora de conversa ele falou sobre manifestações – incluindo a
cobertura da imprensa – e sobre a reação dos poderosos do futebol ao
que aconteceu nas ruas. E fez sua previsão para a Copa 2014: “Se não
houver respostas, [a reação popular] vai ser maior do que foi”.
ENTREVISTA
Como você avalia as manifestações pautadas na Copa do Mundo? Por que no Brasil elas tomaram esta proporção?
Juca Kfouri - Acho que as manifestações
vão continuar porque infelizmente estão fechando as primeiras portas
mais óbvias para as saídas que deem solução. A mini-constituinte, que
era uma ótima ideia, estranhamente a própria presidenta recuou dela. A
ideia foi mal recebida pela mídia, mas isso não deve ser motivo para se
desistir, ao contrário. Se a mídia está olhando de cara feia é bom
insistir nisso. Tem uma solução criativa ali e acho que, na verdade, se
mostra um medo brutal das soluções criativas que o povo eventualmente
seja capaz de dar. Uma coisa que me chamou muita atenção: conversando
com jornalistas estrangeiros, vi que todos eles estavam surpresos, não
faziam ideia de que o Brasil fosse capaz disso. Há uma imagem distorcida
do que seja o povo brasileiro. A começar pela má compreensão da ideia
do homem cordial, que não é o homem cordato que baixa a cabeça para
tudo. Não se está levando em conta as manifestações mais recentes da
história do Brasil. Em que outro país mais de um milhão de pessoas foram
às ruas pedir Diretas Já? Ou fizeram um processo de impeachment de um
presidente recém-eleito, como o Collor? Além de todas as nossas revoltas
regionais, que caracterizam a história do Brasil. Então acho que nesse
sentido a Copa das Confederações, em alguns lugares, foi a gota d’água. A
suntuosidade faraônica dos estádios padrão FIFA agrediu as pessoas. Nós
não estamos conseguindo dar respostas para transporte coletivo e
estamos fazendo um estádio como esse em Brasília? Ou somos capazes de
fazer um estádio como o Maracanã, que custa R$ 1,2 bi, e por R$ 480
milhões damos para uma empreiteira e para um mega-empresário pagarem em
30 anos, em módicas prestações, aquilo que foi feito com dinheiro
público? Então acho que isso teve um caráter de despertar a indignação.
Daí termos como “escola padrão FIFA”, “saúde pública padrão FIFA”, que
ainda haverá quem critique dizendo: “pera aí, padrão FIFA não porque ele
exclui os pobres”. Mas as reivindicações são de escolas padrão FIFA e
acessíveis a todo mundo. Então acho que não há uma razão só [para os
protestos], acho que são diversas. Havia um copo cheio de reivindicações
“quero que fique melhor, experimentei, sei que é possível”. Foi
surpreendente? Foi. Aliás, eu acho gozado que se critique o governo que
foi pego de surpresa, mas nenhum analista se autocritica dizendo que ele
também não percebeu nada. E havia sinais. Greves que acontecem há anos
em tudo quanto é setor nesse país, manifestações desde os evangélicos
até aos que defendem o casamento igualitário, todas essas coisas estão
nas ruas. Basicamente essas manifestações demonstram que as pessoas
querem tudo de bom e do melhor e elas têm o direito de querer tudo do
bom e do melhor. Houve uma repressão estúpida aqui em São Paulo naquele
dia na avenida Paulista e aí então, aquilo que já estava efervescente,
explodiu de vez.
Mas o fato é que no megaevento Copa do Mundo isso nunca tinha acontecido nessa proporção…
Juca Kfouri - Já cobri uns doze
megaeventos nessa vida, entre Olimpíadas e Copa do Mundo, e nunca vi
nada parecido. A coisa mais chocante que eu já tinha visto foi na Copa
de 1982, na Espanha, quando jogaram Polônia e União Soviética e o
pessoal do Solidariedade fez uma manifestação nas arquibancadas e a
polícia, ainda resquício do franquismo, cobriu os caras de porrada.
Jogou bomba e tudo mais. Era um grupo de ativistas poloneses, com faixas
e tal, o que a FIFA sempre proibiu. Mas não era o povo espanhol na rua,
nada disso. Eu nunca tinha visto nada parecido.
Você tem trânsito nas altas cúpulas do futebol. Como esse pessoal recebeu?
Juca Kfouri - Felizmente não tenho esse
trânsito, mas fico sabendo das coisas. Mas escuta, meu, é a primeira vez
que uma decisão de uma Copa dessa importância não teve cartola no telão
do Maracanã. Porque já na triscada que deu do Blatter com o Marin
mandando a camisa para o Mandela, o estádio começou a vaiar. Aí eles não
foram nem entregar medalha, nem troféu. Foi lá o ministro do Esporte
[Aldo Rebelo], que é uma figura que as pessoas mais ou menos
desconhecem. Então isso dá a medida. É claro que [a vaia] é para eles. O
que mais me angustia é que você tem claramente uma crise de
representação no Brasil. Eu me dei conta disso no aeroporto de Fortaleza
indo para Salvador, vendo nos telões o Itamaraty sendo invadido. Pensei
duas coisas: primeiro, eu não vou tomar esse avião, não posso ficar
duas horas sem notícia; segundo, quem é que pode no Brasil entrar no ar e
dizer: “Calma aí gente, nós vamos fazer as coisas, vamos devagar, não
precisa quebrar tudo”? Quem? Não tem um político. O Chico Buarque?
Caetano Veloso? Dom Paulo Evaristo Arns? O Lula? Fernando Henrique?
Quem? Não tinha um cara. E veja que coisa curiosa, de certa maneira com o
sinal invertido. Se em 1970 se dizia que a gente não deveria torcer
pela seleção brasileira porque isso era reforçar a ditadura, agora, com o
povo brasileiro na rua, a seleção foi muito mais bem tratada. No que a
seleção começou a jogar bem e a ganhar, isso aconteceu. E não é verdade
que as pessoas que estavam no estádio eram alienadas enquanto que só
eram conscientes as que estavam na rua. Porque inclusive aquela maneira
de cantar o hino era um recado de amor ao Brasil. Aquilo mostrou uma
sabedoria que, por incrível que pareça, a nossa intelectualidade e a
nossa mídia tem medo.
E por que, se a FIFA saiu com a imagem arranhada da Copa das Confederações, isso não colou na seleção?
Juca Kfouri - Eu vou dizer uma coisa e
espero ser bem entendido. A FIFA é o que ela é: uma grande
multinacional, que ganha aos tubos, pouco transparente, em processo de
tentativa de transformação e de limpeza tal a sujeira que emergiu dali
nos últimos anos. No entanto, aquilo que o [Joseph] Blatter [presidente
da FIFA] repete quase como um mantra é a pura verdade: a FIFA não pediu
para ninguém se candidatar a receber a Copa do Mundo. E aí o que a FIFA
exige? É óbvio que a FIFA não exige que a avenida esteja como a gente
gostaria, ou que o metrô esteja funcionando plenamente. Ela quer um
estádio do cacete, e o governo brasileiro topou isso. Eu cheguei a
escrever isso e não tenho nenhum orgulho em poder dizer isso. O Lula
teve duas vitórias extraordinárias ao trazer a Copa do Mundo e as
Olimpíadas para o Brasil. Eu digo o Lula porque foi o Lula, a cartolagem
do futebol ou do Comitê Olímpico Brasileiro sempre foi a mesma, os
presidentes é que variaram. O Lula era o único monoglota na reunião do
Comitê Olímpico Internacional. Ele falou depois do Obama, em português, e
ganhou todo mundo. Então eu escrevi o seguinte: ele trouxe não somente
os dois maiores eventos esportivos do mundo para o Brasil, mas os dois
maiores eventos do mundo para o Brasil. Mas corre o risco desse tiro
sair pela culatra, de serem dois fracassos megalomaníacos como esses
eventos. E está acontecendo isso.
Fazendo um paralelo com as Copas
de 50 e de 70 que tiveram motivações políticas claras. Na Copa atual
também há a motivação política de se vender um novo Brasil?
Juca Kfouri - Se há um discurso que eu
repilo veementemente, porque é o discurso do João Havelange, é que
futebol e política não se misturam. Todo evento desse porte tem a ver
com política. A Espanha pós-Franco se vendeu grandemente na Copa de 82 e
mais ainda nas Olimpíadas de Barcelona, em 1992. Foi ali que a Espanha
moderna apareceu para o mundo. A Alemanha unificada fez a festa que fez
em 2006 para mostrar para o mundo que a Alemanha não era aquela imagem
soturna do cinema americano, em preto e branco, em que alemão não
sorria. Então no Brasil não teria porque ser diferente. A tentativa de
se vender a ideia de que futebol e política não se misturam é a maneira
mais política de você transar o futebol. Por que sir Havelange, com esse
discurso, convivia com os Videla, com os Médici, com os tiranetes da
África, com o que há de pior. Então o cara era um facínora, mas ele
dizia que não tinha nada a ver com isso porque ele estava tratando de
futebol. Não existe essa dissociação: as conquistas esportivas são
apropriadas por qualquer governo em qualquer lugar do mundo. O time
americano ganha medalha de ouro nas Olimpíadas e é recebido na Casa
Branca. O time de baseball de Cuba volta campeão mundial, é recebido em
praça pública pelo Fidel Castro. Mas tem outro bom exemplo. É claro que a
ditadura tentou se apropriar da vitória em 1970; não obstante, o Médici
não entrou para a história como o presidente que foi tricampeão do
mundo. Entrou para a história como o presidente do período de mais
tortura no Brasil. Quem entrou para a história como tricampeão do mundo
foi o Tostão, o Pelé, o Rivelino, o Gerson. Não subestime a capacidade
de compreensão do povo. Não houve desumanidade autoritária maior na
recepção de uma Seleção Brasileira campeã mundial como no governo
Fernando Henrique. O time vinha da Ásia, depois de 24 horas dentro de um
avião, e em vez de o presidente cumprimentar um por um, dar uma medalha
e mandar o time para casa descansar, puseram os caras num carro de
bombeiros para desfilar sete horas antes de chegar ao Palácio do
Planalto. Daí o Vampeta dar cambalhota. É claro, a única coisa que ele
poderia fazer era encher a cara no trajeto. Se é um general que faz
aquilo, a gente estaria reclamando até hoje. Mas não, foi um governo
democrático, de um professor de Ciências Sociais, que teve a
insensibilidade de submeter os caras a isso. E passou em brancas nuvens,
ninguém achou nada de mais. É absolutamente inevitável que um governo,
seja ele de que cor for, se aproprie das vitórias esportivas que
estimulem o espírito nacional.
Mas as manifestações subverteram essa propaganda?
Juca Kfouri - Por um lado podem ter
subvertido, diante de uma visão conservadora. Diante de uma concepção
mais de vanguarda, não. Elas mostraram a pujança do Brasil. Que país
vivo é esse? Ou você não acha que o Brasil vai ser um país melhor depois
disso tudo? Junho de 2013 marca um momento na história do Brasil,
daqui a 50 anos vai se falar disso. A minha preocupação nesse momento é
apenas de ver a nossa elite fechando portas para soluções de baixo, as
soluções que vem da rua. Se fizer isso, vai pegar fogo. Porque primeiro:
eu adoro aquele cartaz que diz “cidade muda não muda”. Segundo: você
não conhece na história da humanidade nenhuma transformação que não
tenha sido feita com alguma violência. Há evidentemente uma polarização.
Estão aí os evangélicos na rua, dando demonstrações. É natural que haja
uma resposta a isso. Nego parece que não se dá conta da gravidade.
Porque em pleno fogareiro o presidente da Câmara [Henrique Eduardo
Alves, do PMDB-RN] pega um avião da FAB e vai ver a final na Maracanã,
não é possível. Não é possível que ele não tenha cuidado com o próprio
pescoço.
E as manifestações já tomam, em
alguns casos, um viés de personalizar as críticas. Como os acampados na
frente da casa do governador do Rio…
Juca Kfouri - É isso. Por que na casa do
Sérgio Cabral e não na do Alckmin, ou do Aécio, ou do Anastasia? Porque
o caso da privatização do Maracanã foi mais gritante do que os outros.
Porque quiseram demolir o estádio de atletismo Célio de Barros, a escola
Friedenreich, o Museu do Índio, e a Copa das Confederações mostrou que
não precisa. Eu fui de metrô para o jogo, numa boa. Saí de Copacabana às
5 horas, e em 20 minutos estava dentro do Maracanã. Então ficou muito
gritante. Nego está dizendo para ele: “Você não me engana mais e eu vou
ficar aqui na frente da sua casa te incomodando”. Agora, você vê como
são as coisas engraçadas. Todos nós somos a favor do direito de ir e
vir, inquestionável. Todos nós preferimos que não haja excessos, nem
quebra-quebra. Mas uma semana antes de começarem as manifestações de
rua, os produtores rurais fecharam estradas no interior do Brasil e não
aconteceu nada. Ninguém falou do direito de ir e vir. Não mandaram a PM.
Aliás é outra questão que está posta em cheque, enfim: precisa acabar
essa merda. Isto aí é fruto da ditadura. Polícia militar é para policiar
região fronteiriça, região em que haja conflagração, é uma polícia que
trata oponente como inimigo para aniquilá-lo. Não é para por em meio à
segurança pública. É sabido isso. Não são poucos os pedidos da ONU para
acabar com a PM no Brasil.
E depois do que aconteceu na Maré, no Rio de Janeiro, essa questão está ainda mais colocada…
Juca Kfouri - Sim. Porque é isso: eles
vão para a guerra. A postura deles não é outra, a postura é de guerra.
Você é inimigo para eles. Quem vai a campo de futebol sabe disso. Quer
dizer, para organizar uma fila para compra de ingresso eles jogam o
cavalo em cima da torcida. Aí você fala: “Ah, mas o torcedor é
violento”. Mas como é que você acha que o cara vai entrar em campo? Uma
faísca já vai pegar fogo. Eu sempre digo isso: trate o torcedor feito
gado e ele vai se comportar feito um animal.
da APública
vía:
http://www.kaosenlared.net/america-latina/item/63180-brasil-%E2%80%9Ccopa-das-manifesta%C3%A7%C3%B5es.html
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