"Aumentaram todos os tipos de conflito (maiores números dos últimos 10
anos, o de terra maior em 32 anos de documentação) e todas as formas de
violência no campo em relação a 2015. Os assassinatos tiveram um aumento
de 22%, menor índice de aumento em 2016, mas o maior número desde 2003.
As agressões tiveram o maior índice de aumento: 206%."
O relatório “
Conflitos no Campo Brasil 2016” da CPT
traz índices recordes e ainda mais preocupantes: aumentaram todos os
tipos de conflito (maiores números dos últimos 10 anos, o de terra maior
em 32 anos de documentação) e todas as formas de violência no campo em
relação a 2015. Os assassinatos tiveram um aumento de 22%, menor índice
de aumento em 2016, mas o maior número desde 2003. As agressões tiveram o
maior índice de aumento: 206%, destaca Ruben Siqueira da Coordenação Executiva Nacional da CPT em análise publicada por Comissão Pastoral da Terra, 18-04-2017.
Eis o texto.
A violência é uma marca da trajetória do Brasil, 517 anos do “descobrimento” neste sábado, 22 de abril. Está nos momentos históricos e no cotidiano do povo, na cidade e no campo. A propalada “cordialidade” do tipo brasileiro tornou-se uma construção ideológica que impede de enfrentá-la. Há, por exemplo, um muito popular noticiário de violência urbana feito por uma imprensa especializada, apelidada “mundo cão”, de jornais (e telejornais) que, como se diz, “se espremer sai sangue”… Já a violência rural, mesmo sendo constante, aparece pouco, até quando excede padrões, em determinados períodos, como o atual. A crise ampla que vivemos, sobretudo política, marcada pelo golpe que foi o impedimento da Presidenta Dilma pelo Congresso, com apoio do Judiciário e da mídia empresarial, combina corrupção generalizada com retrocessos constitucionais e perda de direitos sociais e impacta e agrava a tradicional conflitividade agrária. Confirma-se a tese de que em anos de mudanças políticas, tanto à “esquerda” quanto à direita, recrudescem os conflitos no campo e sua violência característica.
Criada há 42 anos para apoiar os camponeses e camponesas vítimas da violência no campo, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) mantém um Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, que coleta informações e publica um relatório anual desta violência, com dados estatísticos e análises. O deste ano – “
Conflitos no Campo Brasil 2016” – lançado na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília. A data, 17 de abril, lembra o Massacre de Eldorado dos Carajás,
em que 21 trabalhadores rurais sem- terra foram mortos pela Polícia
Militar do Pará em 1996. O relatório traz índices recordes e ainda mais
preocupantes: aumentaram todos os tipos de conflito (maiores números dos
últimos 10 anos, o de terra maior em 32 anos de documentação) e todas
as formas de violência no campo em relação a 2015. Os assassinatos
tiveram um aumento de 22%, menor índice de aumento em 2016, mas o maior
número desde 2003. As agressões tiveram o maior índice de aumento: 206%.
Sob as sombras da violência
No texto analítico que escreveu para esta edição, Leonardo Boff aponta as “quatro sombras que pesam sobre nós e que originaram e originam a violência”. São elas o nosso passado colonial elitista e dependente da matriz; o genocídio indígena, que gerou o desrespeito e a discriminação social; a escravidão negra, “a mais nefasta de todas”, que estruturou a desigualdade social das maiores do mundo; e a capitalista Lei de Terras (1850), que excluiu os pobres e, preventivamente, os ex-escravos (Abolição, 1888) do acesso à terra e os entregou “ao arbítrio do grande latifúndio, submetidos a trabalhos sem garantias sociais”.
A terra sempre foi eixo do poder no Brasil, ainda hoje define quem tem e quem não tem o Estado a seu favor (ou contra). No momento atual crítico sem precedentes, ampliam-se e se aprofundam as consequências entrecruzadas destas sombras do passado. É o que significam os sucessivos golpes, culminados no impedimento da Presidenta Dilma e no “saco de maldades” sem fim, aberto pelo interino e ilegítimo Presidente Temer. Na verdade, já vinham de antes, a crise mundial chegando aqui, desfavorecendo as exportações de commodities, os “ajustes estruturais” da economia com impacto negativo nas políticas agrárias e agrícolas. Puseram-se todas as políticas ainda mais a serviço dos processos reciclados de acumulação ampliada do capital globalizado, aos quais associam-se como sempre as oligarquias nacionais corruptas e corruptoras do Estado. Para tanto, impunha-se e se impõe afastar quaisquer resquícios de soberania político-econômica e social e subtrair representatividade popular e direitos constitucionais, no que poderia ser chamado de hiper-neoliberalismo.
No campo isto tem se traduzido em mais violência, privada e pública, contra as povos, comunidades e pessoas e seu modo de viver e se relacionar com os bens da terra. Agora não mais só a terra de lavrar e/ou extrair a sobrevivência e a soberania alimentar, mas também a que contêm e protege água, floresta, minério, vento, biodiversidade, que o mercado absoluto reclama como acumulação primitiva de capital.
Dados alarmantes
Os números de 2016 documentados pela CPT revelam em proporções até certo ponto inéditas nos últimos anos, essa exacerbação da violência rural de sempre. Na Apresentação do relatório, a Diretoria e a Coordenação Executiva Nacional da CPT apontam os seguintes dados principais:
- 61 assassinatos, mais de 5 por mês (entre as vítimas, 16 jovens de 15 a 29 anos, 01 adolescente e 06 mulheres). No quadro dos últimos 25 anos, número superior a esse só em 2003 [primeiro ano do governo Lula], com o registro de 73 assassinatos;
- 1.079 ocorrências de conflitos por terra (ações em que há algum tipo de violência – expulsão, despejo, assassinatos, tentativas de assassinato, ameaças de morte, prisões etc.). É o número mais elevado nos 32 anos de registros da CPT;
- 1.295 no total do conjunto dos conflitos por terra (soma de ocorrências, ocupações/retomadas, acampamentos) – média de 3,8 conflitos por dia. Número mais elevado desde 2006;
- 172 conflitos pela água, número mais elevado desde quando a CPT iniciou o registro em separado destes conflitos em 2002;
- 1.536 conflitos no campo (soma de conflitos por terra, pela água e trabalhistas) – média de 4,2 conflitos por dia. Número mais elevado desde 2008.
As áreas de maior conflitividade continuam sendo as de expansão da fronteira, não só do carro-chefe agronegócio, mas também da mineração, dos projetos de energia (hidrelétricas, eólicas etc.) e de outras obras de infraestrutura, como as rodoviárias, ferroviárias, hídricas etc. Estão sobretudo na Amazônia e nos Cerrados. Os números revelam uma guerra não declarada, obscurecida pelo discurso do desenvolvimento, reduzido a crescimento econômico, que se impõe inquestionável como gerador de emprego e renda, bom para todos etc.
O desmatamento e as queimadas na Amazônia voltaram a crescer, e com eles a violência contra os povos da floresta. Lá ocorreram 57% dos conflitos, 54% das famílias envolvidas em conflitos por terra e 79% dos assassinatos (48). Quanto à área em disputa em 2016, a Amazônia Legal (inclui, além dos estados da região Norte, o Mato Grosso e parte do Maranhão) representou 96% do total do país, quase 23 milhões de hectares. Com apenas 12% da população brasileira, imagina-se a intensidade destes conflitos.
Já os Cerrados, com 14,9% da população rural do país, tiveram 24,1% do total das suas localidades envolvidas em conflitos, um índice de 1,67 (24,1 dividido por 14,9), o número destes sendo relativamente maior (67%) do que sua população. São dados do texto analítico dos conflitos na região, que consta no relatório, elaborado pelo Coletivo LEMTO-UFF (Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense). Nos Cerrados, o aumento da violência coincide com o início do Plano de Desenvolvimento Agropecuário do MATOPIBA, região que engloba a parte deste bioma dos estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, com cerca de 73 milhões de hectares e 6 milhões de habitantes. Trata-se da metade do que resta dos Cerrados em pé, de crucial importância para o ciclo hidrológico e a recarga das principais bacias hidrográficas do continente sul-americano. Boa parte ainda preservada porque sob controle de povos e comunidades tradicionais. O Tocantins, estado todo dentro do MATOPIBA, teve o maior aumento dos conflitos por terra, 313%, de 24 em 2015 para 99 em 2016. O Maranhão, o mais conflagrado do país, 196 ocorrências.
Os ideólogos do agronegócio insistem em exaltar a importância maior da tecnologia e do conhecimento científico e a concomitante perda de importância da terra. Ao contrário, o texto citado do Coletivo LEMTO afirma que “é impossível a produção agrícola sem as condições metabólicas de produção-reprodução da vida – terra, água, fotossíntese-flora-fauna. Enfim, não se planta sem acesso a água, sem acesso ao Sol (à fotossíntese) e essa energia gratuita é ainda maior em países tropicais, o que, sem dúvida, ajuda a explicar a reprodução há mais de 500 anos desse bloco de poder de acumulação em sua subordinação voluntária ao sistema mundo capitalista moderno-colonial. Assim, concentração fundiária (latifúndio) implica não somente a concentração de uma área, mas também maior acesso à energia solar e a água.” E pela tradição que se recicla e se reproduz conforme as nuances históricas desta trajetória brasileira, a questão agrária e sua violência característica também se refaz, modernamente, para infelicidade camponesa e nacional, com seus reflexos nas cidades.
No período recente, têm sido os camponeses posseiros (possuem a terra sem título de propriedade) e os povos e comunidades tradicionais, em quase todas as regiões do país, as principais vítimas da violência rural. A partir de 2009, os dados relativos a eles ultrapassam os relativos aos sem-terra. Reflexo, por um lado, da confluência entre retrocessos na política agrária dos governos de coalizão do PT (redução à quase paralisação da reforma agrária e do reconhecimento das terras indígenas e territórios tradicionais) e o recuo das ocupações de terra e acampamentos de luta pela reforma agrária. Por outro lado, consequência do diversificado avanço recolonizado dos empreendimentos privados e públicos sobre os recursos naturais presentes nos territórios de posse imemorial destes povos e comunidades.
O golpe e os golpes no campo
Ao impedimento golpista da Presidenta Dilma em 31 de agosto de 2016, por um Congresso dos mais conservadores, com o apoio do Judiciário e da mídia, seguiu-se uma avalanche de ataques aos direitos dos pobres e da classe média, a população que trabalha, paga impostos e sustenta o Estado. Sete meses e meio depois, ao confirmarem-se as apressadas alterações legais em curso, inclusive na Constituição de 1988, chamada “Cidadã”, somadas às já sancionadas, estará desmontado o que restava de social no Estado brasileiro e reinará absoluta a plutocracia, em níveis semelhantes ao do período colonial. Fica a certeza de que o golpe foi engendrado justamente para isto, possível só por um governo ilegítimo, corrupto, sem votos e sem programa aprovado nas urnas. Dada a centralidade da terra (leia-se agronegócio e neo-extrativismo) para o poder, o impacto deste desmonte no campo tem sido devastador.
A publicação da CPT traz um estudo liderado pelo professor Marco Mitidiero Jr, da UFPB, que mostra, com base no monitoramento minucioso do comportamento legislativo e executivo (e judiciário, acrescentaríamos) no referente ao campo, a intensificação dos ataques aos direitos dos povos para beneficiar os interesses ruralistas, a partir do golpe de agosto. No centro, a Bancada Ruralista de 207 deputados e dois dos principais ministros – os ruralistas da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o “sojeiro” Blairo Maggi, e da Justiça, Osmar Serraglio. Em 2016 foram 11 novos projetos e propostas de legislação e 29 Decretos-Leis, totalizando 40 ações contra os povos e comunidades do campo, das águas e das florestas.
Na Apresentação do relatório consta uma síntese destes principais ataques, como se fosse um “programa de governo” consubstanciado:
- na série de Medidas Provisórias, Projetos de Lei, Propostas de Emendas Constitucionais e Decretos que afetam diretamente povos e comunidades do campo e na nomeação de pessoas para altos cargos abertamente contrárias aos direitos dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e de outras comunidades camponesas;
- na extinção de ministérios e autarquias que deviam se preocupar com os direitos humanos; e na diminuição de recursos e de pessoal para órgãos responsáveis por garantir algumas políticas sociais, como Funai, Incra, Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, e outros;
- em mandados judiciais que enquadraram os movimentos sociais (de modo mais explícito o MST) como organização criminosa nos termos da lei 12.850/2013, como se viu em Goiás;
- em procedimentos judiciais, como no seringal Capatará no Acre, em que o mandado de reintegração de posse de 2.000 hectares se estendeu para aproximadamente 7.000; e em outros casos na identificação policial de cada família expulsa ou despejada de áreas ocupadas;
- na atribuição às vítimas das agressões e violências a responsabilidade pelo conflito. Lideranças indígenas foram indiciadas judicialmente, no conflito em Caarapó, MS, onde um índio foi assassinado e outros cinco saíram feridos;
- na tentativa de desqualificação das vítimas. “[Os] trabalhadores são, em sua maioria, viciados em álcool e em drogas ilícitas, de modo que […] gastam todo o dinheiro do salário, perdem seus documentos e não voltam para o trabalho, quando não muito praticam crimes”, esta é uma ilustrativa sentença proferida, em 2016, por uma Juíza do Trabalho de Santa Catarina contra a atuação dos fiscais do trabalho que resgataram 156 vítimas em condições análogas a trabalho escravo;
- na polêmica em torno à divulgação da Lista Suja do Trabalho Escravo em que a preocupação maior é como proteger os responsáveis pela exploração do trabalho em condições análogas ao trabalho escravo, não as pessoas que sofrem a exploração.
Entre outros destacaríamos, dada a gravidade das consequências: o PL 4059/2012, da bancada ruralista com apoio do governo golpista, que trata da venda irrestrita de terras a estrangeiros; o substitutivo do deputado ruralista Mauro Pereira (PMDB/RS) ao PL 3729/04, que cria a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, praticamente retirando o ambiental do licenciamento, à semelhança do que fez o Código Florestal com as florestas; a privatização das águas, bem público essencial; a retirada da ANVISA e do IBAMA do controle sobre os agrotóxicos, dos quais a agricultura brasileira já é a maior consumidora mundial; e os cortes na Previdência Rural, que levará miséria ainda maior ao campo.
Soluções estão nas lutas
Difícil imaginar que as soluções para quadro tão tenebroso possam vir de quem é parte central dos problemas. Dizia Paulo Freire que quem inaugura a violência é quem violenta e que só os oprimidos têm futuro, porque almejam a liberdade, enquanto os opressores só tem a reprodução do seu presente de opressão. São premissas que nos levam a buscar as soluções para este quadro histórico e presentemente exasperado de conflitos agrários, entre os violentados do campo não entre os violentadores.
A despeito dos ideólogos do agronegócio para quem a questão agrária brasileira está resolvida pelas modernas empresas-latifúndios, com base na tecnologia e na média e grande propriedades, estruturalmente apoiadas pelo Estado, os dados apresentados pela CPT atestam a sua irresolução, reiteração e reciclagem em pleno século XXI. Atrás um imenso rastro de sangue.
Impõe-se ressignificada e revalorizada contemporaneamente a reforma agrária como solução, o que a CPT vem dizendo desde 2009 (“Por outra compreensão e ressignificação da reforma agrária”) e a CNBB desde 2013 (“A Igreja e a questão agrária no século XXI”). Ela continua como um instrumento nas mãos do Estado para a democratização sócio-político-econômica da terra e da nação brasileira, mas que se imponha pela força da sociedade, em torno dos movimentos populares de luta pela conquista e defesa da terra e dos territórios. E precisa agregar as dimensões não só distributiva e produtiva, mas também da soberania alimentar, do “cuidado da casa comum” (Papa Francisco) – frentes às crises ambiental, climática, hídrica e energética – e a dimensão étnico-cultural. Algo que depende de um projeto nacional que não temos mais, se já tivemos… É mais que urgente construí-lo, para sairmos da barafunda em que nos metemos/meteram.
Ao final do citado texto de Leonardo Boff no relatório, ele sugere algumas implicações desta reforma agrária: “(…) um programa de fortalecimento da agricultura familiar, orgânica e ecológica e dos assentamentos de reforma agrária; uma política de promoção de uma nova matriz científica e tecnológica; educação para o meio rural [do campo, diríamos]; uma política pública de crédito rural; associativismo e cooperativismo; rede de proteção social; soberania e segurança alimentar e especialmente desenvolver o bio-regionalismo aproveitando os bens e serviços de cada região, a fim de se garantir a sustentabilidade das populações aí residentes; por fim, a cultura e o lazer que conferem plenitude à vida”.
Com isto tem a ganhar todo o povo brasileiro, não apenas uma elite diminuta e predatória, que nunca se locupleta. Resgata-se a dignidade das vítimas e seus familiares, reconhece-se a importância da imensa população rural, bem maior do que dizem as enviesadas estatísticas oficiais, descomprimem-se as inseguras e inviáveis metrópoles, em tudo colaborando para o bem-estar e a paz no país e a sobrevivência da humanidade e do planeta.
Fonte: IHU
vía:http://www.biodiversidadla.org/Principal/Secciones/Documentos/Brasil_O_aumento_da_violencia_no_campo_tem_a_cara_do_golpe
Eis o texto.
A violência é uma marca da trajetória do Brasil, 517 anos do “descobrimento” neste sábado, 22 de abril. Está nos momentos históricos e no cotidiano do povo, na cidade e no campo. A propalada “cordialidade” do tipo brasileiro tornou-se uma construção ideológica que impede de enfrentá-la. Há, por exemplo, um muito popular noticiário de violência urbana feito por uma imprensa especializada, apelidada “mundo cão”, de jornais (e telejornais) que, como se diz, “se espremer sai sangue”… Já a violência rural, mesmo sendo constante, aparece pouco, até quando excede padrões, em determinados períodos, como o atual. A crise ampla que vivemos, sobretudo política, marcada pelo golpe que foi o impedimento da Presidenta Dilma pelo Congresso, com apoio do Judiciário e da mídia empresarial, combina corrupção generalizada com retrocessos constitucionais e perda de direitos sociais e impacta e agrava a tradicional conflitividade agrária. Confirma-se a tese de que em anos de mudanças políticas, tanto à “esquerda” quanto à direita, recrudescem os conflitos no campo e sua violência característica.
Sob as sombras da violência
No texto analítico que escreveu para esta edição, Leonardo Boff aponta as “quatro sombras que pesam sobre nós e que originaram e originam a violência”. São elas o nosso passado colonial elitista e dependente da matriz; o genocídio indígena, que gerou o desrespeito e a discriminação social; a escravidão negra, “a mais nefasta de todas”, que estruturou a desigualdade social das maiores do mundo; e a capitalista Lei de Terras (1850), que excluiu os pobres e, preventivamente, os ex-escravos (Abolição, 1888) do acesso à terra e os entregou “ao arbítrio do grande latifúndio, submetidos a trabalhos sem garantias sociais”.
A terra sempre foi eixo do poder no Brasil, ainda hoje define quem tem e quem não tem o Estado a seu favor (ou contra). No momento atual crítico sem precedentes, ampliam-se e se aprofundam as consequências entrecruzadas destas sombras do passado. É o que significam os sucessivos golpes, culminados no impedimento da Presidenta Dilma e no “saco de maldades” sem fim, aberto pelo interino e ilegítimo Presidente Temer. Na verdade, já vinham de antes, a crise mundial chegando aqui, desfavorecendo as exportações de commodities, os “ajustes estruturais” da economia com impacto negativo nas políticas agrárias e agrícolas. Puseram-se todas as políticas ainda mais a serviço dos processos reciclados de acumulação ampliada do capital globalizado, aos quais associam-se como sempre as oligarquias nacionais corruptas e corruptoras do Estado. Para tanto, impunha-se e se impõe afastar quaisquer resquícios de soberania político-econômica e social e subtrair representatividade popular e direitos constitucionais, no que poderia ser chamado de hiper-neoliberalismo.
No campo isto tem se traduzido em mais violência, privada e pública, contra as povos, comunidades e pessoas e seu modo de viver e se relacionar com os bens da terra. Agora não mais só a terra de lavrar e/ou extrair a sobrevivência e a soberania alimentar, mas também a que contêm e protege água, floresta, minério, vento, biodiversidade, que o mercado absoluto reclama como acumulação primitiva de capital.
Dados alarmantes
Os números de 2016 documentados pela CPT revelam em proporções até certo ponto inéditas nos últimos anos, essa exacerbação da violência rural de sempre. Na Apresentação do relatório, a Diretoria e a Coordenação Executiva Nacional da CPT apontam os seguintes dados principais:
- 61 assassinatos, mais de 5 por mês (entre as vítimas, 16 jovens de 15 a 29 anos, 01 adolescente e 06 mulheres). No quadro dos últimos 25 anos, número superior a esse só em 2003 [primeiro ano do governo Lula], com o registro de 73 assassinatos;
- 1.079 ocorrências de conflitos por terra (ações em que há algum tipo de violência – expulsão, despejo, assassinatos, tentativas de assassinato, ameaças de morte, prisões etc.). É o número mais elevado nos 32 anos de registros da CPT;
- 1.295 no total do conjunto dos conflitos por terra (soma de ocorrências, ocupações/retomadas, acampamentos) – média de 3,8 conflitos por dia. Número mais elevado desde 2006;
- 172 conflitos pela água, número mais elevado desde quando a CPT iniciou o registro em separado destes conflitos em 2002;
- 1.536 conflitos no campo (soma de conflitos por terra, pela água e trabalhistas) – média de 4,2 conflitos por dia. Número mais elevado desde 2008.
As áreas de maior conflitividade continuam sendo as de expansão da fronteira, não só do carro-chefe agronegócio, mas também da mineração, dos projetos de energia (hidrelétricas, eólicas etc.) e de outras obras de infraestrutura, como as rodoviárias, ferroviárias, hídricas etc. Estão sobretudo na Amazônia e nos Cerrados. Os números revelam uma guerra não declarada, obscurecida pelo discurso do desenvolvimento, reduzido a crescimento econômico, que se impõe inquestionável como gerador de emprego e renda, bom para todos etc.
O desmatamento e as queimadas na Amazônia voltaram a crescer, e com eles a violência contra os povos da floresta. Lá ocorreram 57% dos conflitos, 54% das famílias envolvidas em conflitos por terra e 79% dos assassinatos (48). Quanto à área em disputa em 2016, a Amazônia Legal (inclui, além dos estados da região Norte, o Mato Grosso e parte do Maranhão) representou 96% do total do país, quase 23 milhões de hectares. Com apenas 12% da população brasileira, imagina-se a intensidade destes conflitos.
Já os Cerrados, com 14,9% da população rural do país, tiveram 24,1% do total das suas localidades envolvidas em conflitos, um índice de 1,67 (24,1 dividido por 14,9), o número destes sendo relativamente maior (67%) do que sua população. São dados do texto analítico dos conflitos na região, que consta no relatório, elaborado pelo Coletivo LEMTO-UFF (Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense). Nos Cerrados, o aumento da violência coincide com o início do Plano de Desenvolvimento Agropecuário do MATOPIBA, região que engloba a parte deste bioma dos estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, com cerca de 73 milhões de hectares e 6 milhões de habitantes. Trata-se da metade do que resta dos Cerrados em pé, de crucial importância para o ciclo hidrológico e a recarga das principais bacias hidrográficas do continente sul-americano. Boa parte ainda preservada porque sob controle de povos e comunidades tradicionais. O Tocantins, estado todo dentro do MATOPIBA, teve o maior aumento dos conflitos por terra, 313%, de 24 em 2015 para 99 em 2016. O Maranhão, o mais conflagrado do país, 196 ocorrências.
Os ideólogos do agronegócio insistem em exaltar a importância maior da tecnologia e do conhecimento científico e a concomitante perda de importância da terra. Ao contrário, o texto citado do Coletivo LEMTO afirma que “é impossível a produção agrícola sem as condições metabólicas de produção-reprodução da vida – terra, água, fotossíntese-flora-fauna. Enfim, não se planta sem acesso a água, sem acesso ao Sol (à fotossíntese) e essa energia gratuita é ainda maior em países tropicais, o que, sem dúvida, ajuda a explicar a reprodução há mais de 500 anos desse bloco de poder de acumulação em sua subordinação voluntária ao sistema mundo capitalista moderno-colonial. Assim, concentração fundiária (latifúndio) implica não somente a concentração de uma área, mas também maior acesso à energia solar e a água.” E pela tradição que se recicla e se reproduz conforme as nuances históricas desta trajetória brasileira, a questão agrária e sua violência característica também se refaz, modernamente, para infelicidade camponesa e nacional, com seus reflexos nas cidades.
No período recente, têm sido os camponeses posseiros (possuem a terra sem título de propriedade) e os povos e comunidades tradicionais, em quase todas as regiões do país, as principais vítimas da violência rural. A partir de 2009, os dados relativos a eles ultrapassam os relativos aos sem-terra. Reflexo, por um lado, da confluência entre retrocessos na política agrária dos governos de coalizão do PT (redução à quase paralisação da reforma agrária e do reconhecimento das terras indígenas e territórios tradicionais) e o recuo das ocupações de terra e acampamentos de luta pela reforma agrária. Por outro lado, consequência do diversificado avanço recolonizado dos empreendimentos privados e públicos sobre os recursos naturais presentes nos territórios de posse imemorial destes povos e comunidades.
O golpe e os golpes no campo
Ao impedimento golpista da Presidenta Dilma em 31 de agosto de 2016, por um Congresso dos mais conservadores, com o apoio do Judiciário e da mídia, seguiu-se uma avalanche de ataques aos direitos dos pobres e da classe média, a população que trabalha, paga impostos e sustenta o Estado. Sete meses e meio depois, ao confirmarem-se as apressadas alterações legais em curso, inclusive na Constituição de 1988, chamada “Cidadã”, somadas às já sancionadas, estará desmontado o que restava de social no Estado brasileiro e reinará absoluta a plutocracia, em níveis semelhantes ao do período colonial. Fica a certeza de que o golpe foi engendrado justamente para isto, possível só por um governo ilegítimo, corrupto, sem votos e sem programa aprovado nas urnas. Dada a centralidade da terra (leia-se agronegócio e neo-extrativismo) para o poder, o impacto deste desmonte no campo tem sido devastador.
A publicação da CPT traz um estudo liderado pelo professor Marco Mitidiero Jr, da UFPB, que mostra, com base no monitoramento minucioso do comportamento legislativo e executivo (e judiciário, acrescentaríamos) no referente ao campo, a intensificação dos ataques aos direitos dos povos para beneficiar os interesses ruralistas, a partir do golpe de agosto. No centro, a Bancada Ruralista de 207 deputados e dois dos principais ministros – os ruralistas da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o “sojeiro” Blairo Maggi, e da Justiça, Osmar Serraglio. Em 2016 foram 11 novos projetos e propostas de legislação e 29 Decretos-Leis, totalizando 40 ações contra os povos e comunidades do campo, das águas e das florestas.
Na Apresentação do relatório consta uma síntese destes principais ataques, como se fosse um “programa de governo” consubstanciado:
- na série de Medidas Provisórias, Projetos de Lei, Propostas de Emendas Constitucionais e Decretos que afetam diretamente povos e comunidades do campo e na nomeação de pessoas para altos cargos abertamente contrárias aos direitos dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e de outras comunidades camponesas;
- na extinção de ministérios e autarquias que deviam se preocupar com os direitos humanos; e na diminuição de recursos e de pessoal para órgãos responsáveis por garantir algumas políticas sociais, como Funai, Incra, Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, e outros;
- em mandados judiciais que enquadraram os movimentos sociais (de modo mais explícito o MST) como organização criminosa nos termos da lei 12.850/2013, como se viu em Goiás;
- em procedimentos judiciais, como no seringal Capatará no Acre, em que o mandado de reintegração de posse de 2.000 hectares se estendeu para aproximadamente 7.000; e em outros casos na identificação policial de cada família expulsa ou despejada de áreas ocupadas;
- na atribuição às vítimas das agressões e violências a responsabilidade pelo conflito. Lideranças indígenas foram indiciadas judicialmente, no conflito em Caarapó, MS, onde um índio foi assassinado e outros cinco saíram feridos;
- na tentativa de desqualificação das vítimas. “[Os] trabalhadores são, em sua maioria, viciados em álcool e em drogas ilícitas, de modo que […] gastam todo o dinheiro do salário, perdem seus documentos e não voltam para o trabalho, quando não muito praticam crimes”, esta é uma ilustrativa sentença proferida, em 2016, por uma Juíza do Trabalho de Santa Catarina contra a atuação dos fiscais do trabalho que resgataram 156 vítimas em condições análogas a trabalho escravo;
- na polêmica em torno à divulgação da Lista Suja do Trabalho Escravo em que a preocupação maior é como proteger os responsáveis pela exploração do trabalho em condições análogas ao trabalho escravo, não as pessoas que sofrem a exploração.
Entre outros destacaríamos, dada a gravidade das consequências: o PL 4059/2012, da bancada ruralista com apoio do governo golpista, que trata da venda irrestrita de terras a estrangeiros; o substitutivo do deputado ruralista Mauro Pereira (PMDB/RS) ao PL 3729/04, que cria a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, praticamente retirando o ambiental do licenciamento, à semelhança do que fez o Código Florestal com as florestas; a privatização das águas, bem público essencial; a retirada da ANVISA e do IBAMA do controle sobre os agrotóxicos, dos quais a agricultura brasileira já é a maior consumidora mundial; e os cortes na Previdência Rural, que levará miséria ainda maior ao campo.
Soluções estão nas lutas
Difícil imaginar que as soluções para quadro tão tenebroso possam vir de quem é parte central dos problemas. Dizia Paulo Freire que quem inaugura a violência é quem violenta e que só os oprimidos têm futuro, porque almejam a liberdade, enquanto os opressores só tem a reprodução do seu presente de opressão. São premissas que nos levam a buscar as soluções para este quadro histórico e presentemente exasperado de conflitos agrários, entre os violentados do campo não entre os violentadores.
A despeito dos ideólogos do agronegócio para quem a questão agrária brasileira está resolvida pelas modernas empresas-latifúndios, com base na tecnologia e na média e grande propriedades, estruturalmente apoiadas pelo Estado, os dados apresentados pela CPT atestam a sua irresolução, reiteração e reciclagem em pleno século XXI. Atrás um imenso rastro de sangue.
Impõe-se ressignificada e revalorizada contemporaneamente a reforma agrária como solução, o que a CPT vem dizendo desde 2009 (“Por outra compreensão e ressignificação da reforma agrária”) e a CNBB desde 2013 (“A Igreja e a questão agrária no século XXI”). Ela continua como um instrumento nas mãos do Estado para a democratização sócio-político-econômica da terra e da nação brasileira, mas que se imponha pela força da sociedade, em torno dos movimentos populares de luta pela conquista e defesa da terra e dos territórios. E precisa agregar as dimensões não só distributiva e produtiva, mas também da soberania alimentar, do “cuidado da casa comum” (Papa Francisco) – frentes às crises ambiental, climática, hídrica e energética – e a dimensão étnico-cultural. Algo que depende de um projeto nacional que não temos mais, se já tivemos… É mais que urgente construí-lo, para sairmos da barafunda em que nos metemos/meteram.
Ao final do citado texto de Leonardo Boff no relatório, ele sugere algumas implicações desta reforma agrária: “(…) um programa de fortalecimento da agricultura familiar, orgânica e ecológica e dos assentamentos de reforma agrária; uma política de promoção de uma nova matriz científica e tecnológica; educação para o meio rural [do campo, diríamos]; uma política pública de crédito rural; associativismo e cooperativismo; rede de proteção social; soberania e segurança alimentar e especialmente desenvolver o bio-regionalismo aproveitando os bens e serviços de cada região, a fim de se garantir a sustentabilidade das populações aí residentes; por fim, a cultura e o lazer que conferem plenitude à vida”.
Com isto tem a ganhar todo o povo brasileiro, não apenas uma elite diminuta e predatória, que nunca se locupleta. Resgata-se a dignidade das vítimas e seus familiares, reconhece-se a importância da imensa população rural, bem maior do que dizem as enviesadas estatísticas oficiais, descomprimem-se as inseguras e inviáveis metrópoles, em tudo colaborando para o bem-estar e a paz no país e a sobrevivência da humanidade e do planeta.
Fonte: IHU
vía:http://www.biodiversidadla.org/Principal/Secciones/Documentos/Brasil_O_aumento_da_violencia_no_campo_tem_a_cara_do_golpe
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