Sociedade-Cultura: O discurso da servidão voluntária.....O darwinismo social de nosso capitalismo não sentencia que aquilo que sobrevive e sobrepuja é a única força possível – e válida? Sendo assim, por que as vítimas deveriam se identificar com as vítimas? Daniel Balint, protagonista de Tolerância Zero (2001), reproduz o discurso da servidão voluntária, “contanto que eu possa escarrar o meu ódio contra o outro que é tão impotente quanto eu mesmo”. Por Flávio Ricardo Vassoler
O darwinismo social de nosso capitalismo não sentencia que aquilo
que sobrevive e sobrepuja é a única força possível – e válida? Sendo
assim, por que as vítimas deveriam se identificar com as vítimas? Daniel
Balint, protagonista de Tolerância Zero (2001), reproduz o discurso da
servidão voluntária, “contanto que eu possa escarrar o meu ódio contra o
outro que é tão impotente quanto eu mesmo”. Por Flávio Ricardo Vassoler
Conheçam Daniel Balint, protagonista do filme Tolerância Zero (2001),
direção de Henry Bean. Um judeu renegado. Um jovem. Quando ainda estava
na escola, Daniel teve uma áspera discussão com seu professor de
Teologia. Estava em jogo a natureza da fé e do poder. A identidade de
Deus. O professor discutia a passagem bíblica em que Deus ordena a
Abraão que lhe ofereça seu filho Isaac em holocausto. Os demais alunos
acatam a explicação (chancelada) do professor. “Deus queria testar
Abraão para saber se, de fato, seu coração O amava sobre todas as
coisas”. Mas Daniel não aceita o sermão repleto de contradições.
−
Ainda que Deus, no derradeiro momento, tenha impedido o pai de imolar o
próprio filho; ainda que um cordeiro tenha sido posteriormente
oferecido em holocausto, tudo isso demonstra que o Pai está mais
preocupado com o temor que impinge em seus filhos do que com a fé e o
amor.
Escandalizado, o professor começa a vociferar e ameaça
expulsar Daniel da sala. Mas o intelecto indômito do jovem quer levar a
iconoclastia às últimas consequências:
− É isso mesmo, Deus só
quer que tenhamos medo! E que importa que Abraão, ao fim e ao cabo, não
matou Isaac? Deus lançou tal desafio, e no momento em que Abraão
levantou o punhal, seu coração se fez impuro. Como Isaac poderia
esquecer tudo aquilo? Poderia o filho perdoar algum dia ao próprio pai?
Poderia o pai perdoar a si mesmo?
Daniel parece ressoar o abandono que outro judeu, Jesus Cristo, exalou em seus últimos momentos de crucificação:
− Pai, por que me abandonaste?
Daniel
abandonou a escola que não sabia lidar com suas questões e angústias.
Em tenra idade descobriu que a fé e o fetichismo são tão contíguos
quanto o corpo e a sombra. Os espectadores só não esperávamos tamanha
conversão passados alguns anos. No início de sua vida adulta, Daniel
Balint começa a militar em movimentos de extrema direita. A cabeça
raspada, os coturnos, os suspensórios e a suástica sob a jaqueta surrada
não deixam dúvidas sobre sua nova orientação neonazista. Daniel, leitor
de Mein Kampf (Minha Luta), discípulo de Adolf Schicklgruber, também
conhecido como Adolf Hitler.
O redivivo episódio bíblico
envolvendo Abraão e Isaac parece iluminar uma face obscura de Deus que a
trágica conversão de Daniel pretende reproduzir. Como entender que um
judeu possa envergar a suástica? Como entender que a vítima queira ser
arregimentada pelo carrasco? “Ora”, diria Daniel, “Deus não deu cabo de
seus filhos amados? Se assim é, apenas a cerca de arame farpado de
Auschwitz, Dachau e Treblinka separa o amor do ódio, a vingança do
perdão”. Nossa sociedade não cultua os vencedores? O darwinismo social
de nosso capitalismo não sentencia que aquilo que sobrevive e sobrepuja é
a única força possível – e válida? Sendo assim, por que as vítimas
deveriam se identificar com as vítimas? (Ora, ora: o cliente nem sempre
tem razão.) Daniel Balint reproduz o discurso da servidão voluntária,
“contanto que eu possa escarrar o meu ódio contra o outro que é tão
impotente quanto eu mesmo”.
Daniel e seus comparsas brigam sem
mais. Negros, latinos e judeus. Num restaurante kosher, cujos alimentos
obedecem à lei judaica, os neonazis, como Eva, querem comer o fruto
proibido. Só que, ali, o proprietário judeu, munido de um taco de
baseball, inicia uma briga que vai parar diante de um juiz. Os neonazis
são sentenciados pelo dedo em riste da democracia:
− Vocês podem escolher entre passar 30 dias na cadeia ou ouvir histórias de sobreviventes de Auschwitz. E então, o que vai ser?
Pela
primeira vez em suas vidas, os neonazis precisam se deparar com os
efeitos concretos da barbárie fascista. Quando gangues e facções se
enfrentam nas ruas e avenidas das megalópoles, o outro não passa de uma
abstração. O objeto distante do ódio. Um alvo cada vez mais próximo.
Agora, a truculência deve lidar com o sofrimento encarnado, deve escutar
histórias daqueles que não conseguem se libertar do algoz da memória.
A
medida judicial me parece fundamental. Há um fosso enorme entre fazer
odes fictícias à opressão e assistir à morte de um ser humano por chutes
e pauladas. Na verdade, quando uma gangue lincha uma vítima estirada,
toda a humanidade da vítima – e dos carrascos – já se evadiu. Assim, os
neonazis ouvirão relatos de estupros e afogamentos e torturas e
assassínios de pessoas que há muito se sentem culpadas por terem
sobrevivido. Já não será possível tratar o judeu como o espólio
estatístico da câmera de gás. Ele e ela estão ali, poderiam ser nossos
vizinhos, nossos amigos.
A medida judicial que aproxima vítimas e
carrascos deveria se estender aos grandes mandatários que, de seus
gabinetes, não ouvem os gritos e súplicas dos condenados da terra. Se o
presidente Harry Truman conhecesse os homens e mulheres de Hiroshima e
Nagasaki, talvez o bombardeiro Enola Gay não houvesse legado ao Japão
sombras fosforescentes como escombros de guerra. As crianças de Hanói
não tomariam banho com napalm pela manhã se John Fitzgerald Kennedy e
Richard Nixon exalassem o odor dos corpos vietnamitas em decomposição –
corpos desfigurados pelo agente laranja despejado pelos mesmos
helicópteros hipócritas que, décadas depois, lançariam caixas de
alimentos para amortizar a culpa do Ocidente.
Quando Balint ouve
a história de um velho judeu que viu o próprio filho – um bebê! – ser
arrancado de seus braços para morrer espetado pela baioneta de um
soldado da temível SS, o jovem que outrora questionara Deus por conta de
Sua brutalidade para com Abraão e Isaac, quase às lágrimas, só faz
gritar:
− Mas o que foi que você fez para conter o soldado,
velho? Você ficou assistindo à morte de seu próprio filho? Por que não
reagiu? Por que não o matou? Por que você não trucidou aquele assassino?
Daniel cospe as palavras com ódio, o velho pai chora
copiosamente, até que uma sobrevivente logo ao lado questiona com todo o
afinco o heroísmo de estufa do jovem Daniel.
− Mas, ora, como
ousa?! Você não estava ali, como pode julgá-lo? Seu tolo, seu estúpido!
Jovens mais fortes e mais valentes do que você quedaram inertes em
situações similares. Você, aqui, em seu país rico, você acha que pode
bancar o herói!? Só alguém dentro de uma situação pode julgá-la. E esse
alguém será sempre o último a poder julgá-la. O último! O sobrevivente.
Por
um momento, Daniel se cala. É preciso lutar contra a piedade, “eu não
quero chorar, eu não posso chorar!” Súbito, Daniel levanta a cabeça e
dispara:
− Mate o seu inimigo! Resista! Eis o que é preciso fazer.
Daniel
Balint, neonazista judeu, acaba cometendo suicídio. O jovem explode uma
sinagoga a que fora para rezar. “Mate o seu inimigo”. Mate a si mesmo.
“Ora”, diria Daniel, “Deus não deu cabo de seus filhos amados? Se assim
é, apenas a cerca de arame farpado de Auschwitz, Dachau e Treblinka
separa o amor do ódio, a vingança do perdão”. Nossa sociedade não cultua
os vencedores? O darwinismo social de nosso capitalismo não sentencia
que aquilo que sobrevive e sobrepuja é a única força possível – e
válida? Sendo assim, por que as vítimas deveriam se identificar com as
vítimas? (Ora, ora: o cliente nem sempre tem razão.) Daniel Balint
reproduz o discurso da servidão voluntária, “contanto que eu possa
escarrar o meu ódio contra o outro que é tão impotente quanto eu mesmo”.
*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor
universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura
Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora
nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da
modernidade (Editora Intermeios). A partir do dia 02 de setembro,
passará a apresentar o Espaço Heráclito, um programa de debates
políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da
contradição entre as mais variadas teses e antíteses – segundas-feiras,
às 19h, na TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza
o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em
que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas
viagens pelo mundo.
Via:
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22465
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